PATRIMÓNIO DOS POBRES
Eu nem sei como começar este Património, se com grito de justiça, se com clamor contra a desumanidade. Conjugam-se dentro de mim a dor e a revolta.
No submundo, onde por acções prego o Evangelho, acontecem factos que até a mim, habituado a tudo, chocam.
A Janete tem 6 filhos, três com menos de cinco anos e os outros, em escadinha, até aos 13 anos.
O marido está preso, por não pagar multas e andar a conduzir sem carta.
Numa escola de condução já lhe paguei o ensinamento para tirar a dita, mas ele ficou mal no código a primeira vez e, depois, não sei o que se passou (é uma pessoa muito imatura) foi preso outra vez e continua na cadeia, diz a mulher que ele está a pagar uma multa de 2009.
A Janete vivia no terceiro andar de um prédio situado no bairro dos índios, perto da igreja de Nossa Senhora da Conceição. Pagava uma renda mensal de cem euros a um senhorio que, recebendo o dinheiro (a maior parte dos meses foi o Património que a liquidou), não reembolsou o Banco que sem qualquer aviso, com seu executor, pôs na rua esta desgraçada família, sem dó nem piedade.
A vítima, em grande aflição, ainda chamou a polícia, mas esta, nada fez em virtude de não haver recibos.
O contrato era verbal, como tantos que eu conheço. Os senhorios fazem os seus arrendamentos já com a condição de não passar recibo. Os pobres, como aves sem ninho e sem cultura, sujeitam-se a tudo para ter um tecto. Ninguém os defende.
Se a casa não é um direito natural inultrapassável, como a comida, o vestuário, a saúde e a escola, perguntamos:
- A quem recorrer em circunstâncias destas? Será a rua a solução?
As forças do Estado, que têm como missão manter a ordem pública, não deveriam estar ligadas àquelas que devem manter a ordem social, de forma que, assim interligadas, evitem desgraças destas?
Vivemos na Europa ou na África dos atropelos humanos?
Falando com um advogado ouço esta resposta: em conjunturas semelhantes, só chamando a SIC e fazendo escândalo!... É pena!...
O Gaiato vai para a Presidência da Republica. Será que alguém lê e chama a atenção do Chefe de Estado, para estes dramáticos episódios?
Nada disso me parece justo, embora tenha uma explicação legal.
Sabeis queridos leitores, quem acolheu esta inditosa família? Sabeis quem? Os pobres que se doeram dela e das crianças, fazendo-o ilegalmente. Ai deles!, se a autoridade que tutela a sua habitação soubesse!... Por lei, iriam também para a rua.
Ainda não encontramos uma casa abandonada que repararíamos. À Presidente da Câmara, estou a escrever que mande averiguar se, nos bairros sociais da cidade, haverá um aposento mesmo estragado que nós recuperaríamos e onde alojaremos esta desgraça.
A Janete arranjou trabalho na Tróia. Ela é limpinha e asseada. Mãe amorosíssima com os frutos do seu ventre!
Os vizinhos, sentindo a injustiça cometida contra aqueles indefesos, vieram indignados contar-nos o sucedido, gritando por justiça. É a reacção natural dos simples.
Em choque e comunhão fui visitá-la para lhe levar alimentos, fraldas para os bebés, consolá-la e saber como tudo se passara. Ela agarrava com os dois braços os mais novinhos e, cada um do seu lado, levantava a blusa da mãe e se agarrava a chupar o peito, enquanto ela feliz, sorria para nós, sentindo os filhinhos a mamarem-na.
Antes de saber a tragédia já me tinha assustado quando, numa tarde de domingo, fui com os rapazes distribuir pão aos mais pobres e encontrei a porta da Janete cerrada a tijolo e argamassa de cimento.
Afinal só lhe deram um dia para carregar a mobília e os electrodomésticos que nós lhe havíamos dado.
Levar o recheio da casa para onde? Com que meios? Teria ela a capacidade para alugar um transporte e levantar os seus teres para os esconder em qualquer parte?
Pois, é verdade não deram tempo!
Tão friamente como a lei gelada, ainda lhe encarceraram a sua própria cama e a
dos filhos, mais um guarda-roupa de mogno que há pouco lhe havíamos dado.
Tudo legal, tragicamente legal.
Padre Acílio