PÃO DE VIDA
Ainda da oração em Fátima
A 14 de Abril de 2018, o Papa
Francisco recebeu em audiência o Cardeal Ângelo Amato, S.D.B., Prefeito da
Congregação para as Causas dos Santos, e autorizou a promulgação do decreto
relativo: - às virtudes heróicas do Servo de Deus Manuel Nunes Formigão,
sacerdote diocesano, fundador da Congregação das Religiosas Reparadoras de
Nossa Senhora de Fátima; nascido em Tomar, a 1 de Janeiro de 1883, e falecido
em Fátima, a 30 de Janeiro de 1958 [L'Osservatore Romano, 19-IV-2018].
Depois do Centenário das Aparições de Fátima e da sua visita ao
Santuário, também presenciada por nós, este foi um gesto pontifício relevante
para a Igreja em Portugal, que veio confirmar a importância deste Padre
virtuoso como grande estudioso e cabouqueiro dos acontecimentos e da mensagem
de Fátima, há cem anos (1917), em que foram protagonistas três simples
crianças, canonizadas a 13 de Maio de 2017: Francisco, Jacinta e Lúcia.
Veio logo à nossa mente a presença de Padre Américo, há 66 anos, no Santuário de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, na Cova da Iria, e a sua ligação ao Venerável Padre Formigão [1883-1958], como veremos mais adiante. De facto, também se deslocou a esse lugar emblemático da Igreja Católica no século XX, que chegou a ser designado como Altar do mundo. Foi como um simples peregrino e acabou por pregar a parábola do bom Samaritano, na Missa dos Doentes, a 13 de Maio de 1952, no 35.º aniversário da primeira Aparição de Nossa Senhora na Fátima. Certo é que a sua participação nessa Eucaristia teve grande impacto no Povo de Deus e na sociedade portuguesa, desse tempo, pois colocou na agenda eclesial de forma mais visível e audível o tema da pobreza e do serviço aos pobres, tão basilar na Igreja. Foi, pois, um momento culminante da sua vida de Recoveiro dos Pobres, tendo em conta que em Fevereiro de 1951 deu início à construção de moradias para Pobres, em Paço de Sousa, sob o lema cada freguesia cuide dos seus Pobres e cuja iniciativa de cariz paroquial intitulou de Património dos Pobres, como Obra urgente e inédita, conforme escreveu. Esta designação é riquíssima na Tradição cristã, pois remonta a tempos antigos da História da Igreja e tem alto significado teológico. Durante a Patrística e na Alta Idade Média, dominava um princípio: os bens eclesiásticos não pertencem aos homens da Igreja; são - como dizia Pomerius - o património dos pobres [patrimonia pauperum].
Fica assim comprovado, também nesse momento significativo, que o Padre Américo, com a sua vida e Obra, dos anos trinta aos anos cinquenta (pois sucumbiu em 16-VII-1956, devido a um acidente de automóvel), foi dando um testemunho cristão excelente, de regresso às fontes do Cristianismo e como verdadeiro precursor do II Concílio do Vaticano (1962-1965). Na verdade, dez anos depois, em 11 de Setembro de 1962, um mês antes do início desse grande acontecimento eclesial, o Papa João XXIII pronunciou um discurso difundido pela Rádio Vaticano, no qual disse: Em face dos países pobres, a Igreja apresenta-se como é e quer ser: a Igreja de todos, mas especialmente a Igreja dos pobres. Depois, o Papa Paulo VI, no seu magnífico discurso na sessão pública de clausura do II Concílio do Vaticano, em 7 de Dezembro de 1965, salientou: Aquela antiga história do bom Samaritano foi exemplo e norma segundo os quais se orientou o nosso Concílio.
Nestas colunas será inédita a referência a um artigo no jornal A Voz de Fátima [13-VI-1952], que relata de forma pormenorizada essa grande Peregrinação a Fátima, pela pena brilhante de Visconde de Montelo - afinal, o pseudónimo do virtuoso Cónego Dr. Manuel Nunes Formigão, no qual é citado o Padre Américo. Assim, para que conste, das páginas desse mensário respigámos um excerto, como memória desse dia singular, no Santuário de Fátima, com o subtítulo A Missa dos Doentes. Ora eis:
Ao meio-dia começou a Missa dos doentes. Estes já então ocupavam, em longas filas, o espaço central fronteiro ao altar. Eram assistidos por vinte médicos, auxiliados por oitenta servitas que, por espírito de caridade, prestavam os seus serviços, generosa e desveladamente. Todos trabalharam intensamente, sob a direcção do sr. Dr. José Pereira Gens./ Celebrou a Missa Monsenhor [James Peter] Davis, Bispo de Porto Rico [1943-1964], acolitado por dois sacerdotes também americanos. Ao microfone o rev. P.e João Cabeçadas deu aos peregrinos explicações sobre os actos litúrgicos./ O coro era formado pela Schola Cantorum do Seminário de Leiria, sob a regência do rev. cónego dr. João Pereira Venâncio, vice-reitor do Seminário diocesano [depois, Bispo de Leiria, 1958-1972]./ À estação do Evangelho, aproxima-se do microfone o conhecido P.e Américo que vai dirigir a palavra à multidão dos peregrinos. E o benemérito fundador da Obra do Gaiato exprime-se no estilo tão simples e ao mesmo tempo tão eloquente que lhe é familiar. Fala do pobre, e do pobre crucificado. Declara que deseja apenas fazer uma oração no monte da Virgem. Apela para a compaixão de todos, para que todos curem as feridas dos pobres, assim dando testemunho de Cristo. Lembra a divina parábola do Bom Samaritano./ Naquele tempo, passaram perto do pobre espoliado todos os bem instalados na vida, os comerciantes de alma opaca e gelada, todos os egoísmos que se não comovem./ Passaram também sacerdotes formalistas. Todos passaram, um de cada vez./Mas só o Samaritano parou, para se curvar diante dos sofrimentos do pobre. Por isso o Samaritano foi pregado e anunciado por Cristo./ Que nos levou ali? Pedir. Pedir, talvez, cada um para si próprio. Não. Peçamos para os outros e deste modo faremos justiça. Peçamos uma coisa do tempo: uma moradia para aqueles que não têm onde dormir. Vamos construir casas pequeninas, mas arejadas e limpas. Casas para os pobres. De Abril de 1951 a Abril de 1952, construíram-se 26. Como se arranjou o dinheiro para tanto? Amando. Como se descobrem pessoas que sejam generosas? Amando./ Acentuou que muitos voltariam para a sua freguesia por caminho diverso daquele que os conduzira à Fátima, isto é, pensando de outra maneira. Iriam fazer justiça. Sem justiça, não há amor, nem há paz./ No fim do Santo Sacrifício, os dois Prelados de Porto Rico vão dar a bênção individual aos doentes inscritos, que são em número de algumas centenas. Dificilmente se assiste a esta cerimónia de olhos enxutos./ Alternam-se os cânticos e as súplicas. Cada invocação é um apelo imenso de fé. Chora-se e reza-se./ [...] Depois da bênção dos doentes, dá-se a bênção com o Santíssimo Sacramento à multidão dos fiéis que a recebem em silêncio e com piedoso recolhimento./ No fim da cerimónia o Senhor Bispo de Leiria [D. José Alves Correia da Silva, 1920-1957], ao microfone, profere algumas palavras. Diz que o Santo Padre [Papa Pio XII - Eugénio Pacelli] estava, àquela hora, em união com os peregrinos da Fátima, a rezar, na sua capela particular do Vaticano, com 12 rapazinhos de 9 a 10 anos, pela paz no mundo. Pede a todos os peregrinos que rezem consigo três Ave-Maria pelas intenções do Chefe Supremo da Cristandade e mais uma pelas dioceses dos Prelados, portugueses e estrangeiros, que estão presentes naquele dia no Santuário da Fátima./ Reza-se, como de costume, a fórmula da consagração ao imaculado coração de Maria./ Depois, os venerandos Prelados, em conjunto, dão a bênção episcopal à multidão dos peregrinos e benzem os objectos de devoção que lhes são apresentados por eles para esse fim.
Antes de fecharmos este testemunho do Padre Manuel
Formigão sobre a célebre oração do Padre Américo, em Fátima, acenámos
outro precioso artigo no jornal supracitado, da autoria do conhecido advogado
António Lino Neto [† 1961] - fundador do Centro Católico Português - intitulado
Os divinos sinais da dignidade humana, do qual recortámos o início: A
dignidade humana revela-se e afirma-se na prática da caridade, ou seja na
disposição íntima de fazermos aos outros, como a nós mesmos, o bem que
pudermos, tudo referindo a Deus como nosso Criador, e procurando, nesta
conformidade, conter-nos dentro dos bons costumes, na esteira da moral
cristã./ É esta a única medida de ordem universal pela qual melhor se pode
aquilatar do valor da nossa dignidade.
Para a próxima tem de ficar um encontro vocacional determinante entre Padre Américo e uma jovem, que se veio a tornar filha espiritual do Padre Formigão.
Padre Manuel Mendes