PÃO DE VIDA
Vida a germinar
A minha missão não é abrir os ferrolhos da cadeia, mas sim impedir que eles sejam abertos. Por ela tenho dado e quero dar, até ao fim, o sangue das minhas veias. Ajuda-me.
Padre Américo
Neste ano festivo para a Obra da Rua, atrevemo-nos a mais algumas notas dos primórdios da Casa do Gaiato de Paço de Sousa, também para avivar a memória das novas gerações. Tudo tem o seu tempo, como diz o Eclesiastes: Para tudo há um momento e um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu (Ecl 3, 1). Ao aplicarmos o nosso espírito ao estudo das coisas que se passaram na vida de Padre Américo e da Obra, sem dúvida que a maioria das palavras escolhidas, para nestas colunas tecermos algumas considerações sobre a Casa sede, são de mestre e Pai Américo.
Logo meia dúzia de dias depois da chegada dos primeiros Rapazes, o fundador escreveu de Paço de Sousa uma missiva a Russell de Sousa, datada de 6 de Junho de 1943, em que diz assim: As casas de família já começaram a mostrar a formosura que o nosso arquitecto [Teixeira Lopes] soube dar ao meu pensamento. O rústico do granito fica-lhes mesmo a matar. Mando-lhe a fotografia dos Pais que seguiram de Miranda [do Corvo] para aqui, no dia 30 [31] do mês passado, veja e devolva-mas na terça-feira.
Do relatório intitulado Obra da Rua, na segunda edição, dada à estampa no Porto, é imperioso verificar como se desenrolaram os primeiros tempos da vida da comunidade dessa Casa do Gaiato. Ora, eis um minucioso e vivo retrato dessa realidade nascente:
Em Maio, chegam da Casa de Miranda do Corvo, três pioneiros da Obra: o António, de Celorico [de Basto], o Amadeu, de Elvas, e o Adolfo, de Coimbra. Instalámo-nos todos em uma dependência do antigo cenóbio que ficou de pé, para tradição. Comprámos uma vaca, algumas aves domésticas e coisas de primeira necessidade. Cultivava-se um pequenino quintal, com sua horta e jardim e vivíamos como Deus com os anjos. Em Agosto, chegam mais obreiros. Vêm da Casa-Mãe. São os fundadores de Paço de Sousa. Por esse tempo, tomámos conta do amanho da quinta; foram-se embora os caseiros que a fabricavam. Comprou-se mais gado, alfaias, sementes: Começámos a cultivar os campos na sua totalidade. Grandes jeiras de terra negra cobrem-se de tapetes de pão.
Os rapazes deliram com a vida a germinar. Dizem coisas aos frutos pendentes. Falam ao gado nos pastos. Lavam os calos das mãos em grandes bicas de água,
antes de entrar no refeitório. Sente-se uma pequena colónia de pequeninos trabalhadores organizados, com as horas ocupadas na vida de campo, de escolas, de oficinas - horas para tudo.
Vive-se a exuberante alegria que promana do lume da lareira. Os cozinheiros lembram à senhora qualquer prato especial que os rapazes gostariam de comer amanhã. O despenseiro gostou de receber ordens nesse sentido. Os refeitoreiros passam palavra à malta: amanhã temos batatas!
Não vivemos a vida tenebrosa das pautas e dos regulamentos. Dispensou-se o zelo mai-lo saber do funcionário de profissão. Fizemos um pequenino mil seiscentos e quarenta dentro de Portugal e arvoramos a bandeira da independência, com a divisa obra de rapazes, para rapazes, pelos rapazes.
Entrementes, emergem da terra as primeiras moradias da nossa futura aldeia. Aboliu-se o sistema de caserna por ser contra a natureza da criança. Constroem-se vivendas de ar e luz, para famílias de 9, de 14 e de 20 rapazes. Uma casa que verdadeiramente interesse os seus simpáticos e irrequietos habitantes. Que lhes inspire amor ao asseio. Que lhes dê o verdadeiro sentido da dignidade de pessoa humana. O belo, por ser reflexo da Beleza Incriada, tem dentro de si mesmo um grande poder educativo. Digo mais. Sem beleza, toda a pedagogia é morte; nem o próprio Evangelho realça.
A ideia de um quinzenal que dissesse ao mundo quem somos e onde vivemos, depressa tomou forma, e O Gaiato espalhou-se num instante. É devorado: eu leio de ponta a ponta, eis a exclamação dos assinantes que se apresentam, por carta ou de viva voz. Gaiatos dos nossos, vão às cidades vender. O Povo fulmina-os com perguntas de toda a ordem. Trazem assinantes. Trazem donativos. Provocam o espanto:
- Mas como pode ser isto?
- Olhe, vá a Paço de Sousa, respondem os mais finórios. A cidade do Porto pára, escuta, medita, determina-se. É-nos oferecido o edifício da Capela. O Senhor a quem o fui pedir só teve uma palavra:
- Muito obrigado, por se ter lembrado de mim.
Da mesma sorte e pelo mesmo preço, veio um donativo de 40 contos para o edifício da nossa Enfermaria. O das oficinas seguiu na mesma esteira. Porto, Porto, quão tarde te conheci!
Pai Américo foi narrando a vida desta comunidade, em Paço de Sousa, com a sua pena primorosa, como nesta nota eloquente do quotidiano, com eterna gratidão: Temos aurora boreal nas cercanias do Porto. O clarão vem dos lados de Paço de Sousa. É labareda da Casa do Gaiato. Não destrói; edifica. Aquece sem queimar. O nosso Deus é fogo. As Suas obras são, por natureza, incandescentes.
Começa o pequenino Vadio a chegar ao limar da nossa Casa. Já os temos da Granja, do Porto, de Abrantes, de Vila Real - norte a sul do País. O Júlio Mendes, de Elvas, é quem recebe. Depois do abraço cordial mostra dependências, marca lugar, dá normas, ajuda. Ele é simultaneamente cicerone e cireneu, este Júlio encantador. As perguntas fervem. A curiosidade salta:
- Eh! pá, quem manda aqui?
- Somos nós.
E o catraio que saiu de algures com a notícia de ir para um Colégio, Asilo ou Reformatório - consoante o grau de ignorância de quem informa - encontra-se instalado na sua Casa, feliz.
Está precisamente aqui a nota original da Obra da Rua: O miúdo a conhecer e a sentir que está no que é seu. Uma vez formado o pequeno chefe, é ele que risca, com autoridade própria e aquiescência de todos.
Entretanto, em 11 de Fevereiro de 1944, por Portaria, foi oficializada a escola do sexo masculino da Casa do Gaiato das Ruas do Porto, com sede em Paço de Sousa [Diário do Governo, II Série, n.º 36, 14-2-1944]. Enquanto o edifício das escolas não foi construído, as aulas funcionaram numa parte do antigo mosteiro beneditino. Depois, a 16 de Fevereiro de 1944, o Sub-secretário de Estado da Assistência Social - Dr. Joaquim Diniz da Fonseca, o Governador Civil do Porto e o Cónego Dr. Corrêa Pinto visitaram a Casa do Gaiato de Paço de Sousa.
Depois de rica e evangélica colaboração no jornal Correio de Coimbra, da Diocese conimbricense, desde 1932, o Padre Américo mudou de tribuna, para o jornal A Ordem, do Porto, continuando a revelar-se um artista da palavra. Isto aconteceu porque deslocou o centro das suas actividades de Coimbra para o Porto. E, entretanto, conseguiu proceder ao lançamento de um periódico próprio, da Obra da Rua, com as dificuldades dessa época: Do Terreiro do Paço, mandaram-me aos senhores da Censura. Falei à moda dos apaixonados: um jornal que não tenha medo, meu senhor, e que não engane o povo! Ai! Que vou ser preso. Em 5 de Março de 1944, sendo editor e director o Padre Américo, foi publicado o primeiro número do jornal O Gaiato, quinzenário da Obra da Rua, com composição e impressão na Tipografia da Casa Nun'Alvares, no Porto [Rua Santa Catarina, 628]. A redacção, administração e propriedade era na Casa do Gaiato do Porto - Paço de Sousa. Na primeira página vem, em caixa, uma explicação sobre esta nova publicação, da qual recortámos isto: Aparece hoje O Gaiato e regressa no terceiro domingo do mês, à mesma hora, e assim por diante até ao fim do mundo. O famoso ia sendo lido por todas as camadas sociais; e, no dia 16 de Agosto de 1949, foi inaugurada a Tipografia da Casa do Gaiato de Paço de Sousa, começando o jornal O Gaiato a ser ali composto e impresso. Assim se satisfez a necessidade de expansão deste quinzenário e a oficina gráfica passou a ser escola de trabalho para os rapazes.
É de notar que, desde Maio de 1943 a Maio de 1944, se gastaram 1160 contos nas construções da Aldeia do Gaiato, em Paço de Sousa. A 28 de Outubro de 1944, foi chamado pelos anjos o Manuel Delfim, com 9 anos, que fazia a limpeza no claustro do antigo mosteiro de Paço de Sousa. Em 1944, o Padre Américo foi realizando palestras para dar a conhecer a obra e conseguir ajudas para a Obra da Rua: 2 de Novembro - palestra ao microfone da Rádio Renascença, no Porto; 26 de Novembro - palestra e peditório no Coliseu do Porto, em duas sessões, escutado por mais de cinco mil tripeiros; e 10 de Dezembro - palestras nos postos emissores da cidade do Porto, em que afirmou - Eu não tenho outro título para hoje vir à vossa presença, sendo somente o de recoveiro dos pobres.
Numa citada Cronologia, na parte referente à Casa do Gaiato do Porto, feita por Padre Américo, desse tempo apontou mais algumas datas com interesse, v.g.: 1945 - Em o dia 15 de Fevereiro de 1945, coube a vez ao edifício das oficinas. Em 27 de Janeiro de 1945, teve a mesma sorte a Enfermaria.
No fim do ano de 1945, a Obra da Rua era formada por duas Casas do Gaiato: Miranda do Corvo, com 45 rapazes; Paço de Sousa, com 103 rapazes. E, ainda, o Lar do Gaiato do Porto [aberto em 3 de Fevereiro de 1945, na Rua D. João IV, 682], com 20 rapazes; e o Lar do Ex-Pupilo dos Reformatórios, em Coimbra.
Padre Manuel Mendes