PÃO DE VIDA

Aviso seguro

A verdadeira Revolução é levantar os prostrados
 e não deitar abaixo os que caminham.

Padre Américo

Do ventre materno (sim, não alugado e desde o início...) à vida descendente (que deve ser realmente respeitada e amada até à páscoa pessoal), sempre carente de cuidados e proximidade, não deve incumbir exclusivamente ao Estado a protecção e a promoção das pessoas, como Estado providência. Pode correr-se o risco dos cidadãos serem propriedade de qualquer Estado, do berço ao túmulo. Em vez de ser expressão da sociedade civil, há perigos de resvalar para um Estado não supletivo, mas dono e senhor de tudo e de todos, descambar para a burocracia pesada e desnecessária, a milhas de defender a justiça social, nomeadamente os mais elementares direitos das pessoas, em especial dos mais pobres e enfermos. Ainda, infelizmente, há o perigo de surgirem polícias dos regimes e subrepticiamente tentarem uniformizar as iniciativas da sociedade civil.

No campo espiritual e de cooperação, quem dera uma verdadeira separação do Estado das Igrejas e outras confissões religiosas, com respeito pela liberdade religiosa. A nível eclesial e social, é desejável uma Igreja livre num Estado respeitador da sua liberdade.

Na tradição riquíssima da Doutrina Social da Igreja, em especial desde a Encíclica Rerum novarum (15-V-1891), do Papa Leão XIII, entre autorizadas e frutuosas reflexões para as acções dos cristãos no meio do mundo, é magistral uma afirmação do Papa Bento XVI, na Encíclica Deus caritas est (25-XII-2005): O amor — caritas — será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. Não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem. Sempre haverá sofrimento que necessita de consolação e ajuda. Haverá sempre solidão. Existirão sempre também situações de necessidade material, para as quais é indispensável uma ajuda na linha de um amor concreto ao próximo. Um Estado, que queira prover a tudo e tudo açambarque, torna-se no fim de contas uma instância burocrática, que não pode assegurar o essencial de que o homem sofredor — todo o homem — tem necessidade: a amorosa dedicação pessoal. Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apoie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda. A Igreja é uma destas forças vivas: nela pulsa a dinâmica do amor suscitado pelo Espírito de Cristo.

O Papa Bento XVI indica, entre outros, modelos insignes de caridade social, verdadeiros portadores de luz dentro da história: Francisco de Assis, Inácio de Loyola, João de Deus, Camilo de Léllis, Vicente de Paulo, Luísa de Marillac, José B. Cottolengo, João Bosco, Luís Orione, Teresa de Calcutá.

Permitam-nos, neste elenco, nomear Joana Jugan, Padre Damião, Frederico Ozanam - pela rede mundial de caridade tão simples. Entre nós, na Igreja em Portugal, há também muitos exemplos eclesiais bem claros e tantos discretos, do amor a Deus e ao próximo, como o nosso Padre Américo, D. António Barroso, Sílvia Cardoso, Mons. Alves Brás, Padre Abel Varzim...

Vem mesmo a talho de foice a perspicácia de Pai Américo, na leitura dos sinais do seu tempo, bem como a previsão de penas para as quais nos preveniu. A coluna sucinta que deixou, publicada em 22 de Janeiro de 1949 (!), sobre esta matéria, dá mesmo que pensar e visava prevenir e encorajar. Tem um título sugestivo, de facto: PREVENÇÃO — Falo aos vindoiros. Aviso; previno os vindoiros: se alguém se propuser erguer obra social no seu País, que o faça com recta intenção, senão, desanima e deixa cair tudo. Digo no País, porquanto é justamente das organizações oficiais que, por bem, nos chegam os males. Eles carta, eles avisos, ele intimações, ele ameaças, com decretos e códigos. O que a gente aqui não recebe na roda do ano!/ Ultimamente, tem sido o ataque da Caixa de Previdência dos Funcionários da Assistência. Ataque por cartas. Já são três delas./Querem em todo o modo saber qual o número e categoria dos funcionários da Obra. A última, parece um ultimatum, de brava!/ Ora aqui tudo trabalha; não há funcionários.

E mais não diríamos com nota tão expressiva. Certo é que, pelos seus passos perseverantes, a nível eclesial, a Obra da Rua foi verdadeiramente precursora em matéria de promoção social, conseguindo Pai Américo o seu reconhecimento jurídico, em 1947 (há 70 anos!), devidamente publicado na folha oficial. Damos-lhe ainda a palavra, outra vez, para que não haja um equívoco, tal é o título de outro artigo bem esclarecedor, dado à estampa em 24 de Maio de 1952: A Obra da Rua nasceu há onze anos [1940] e teve por padrinho um estatuto dado pelo governador civil de Coimbra. Um outro estatuto, pelo governador civil do Porto. E o último foi na Arcada, por um magistrado da Nação. Todos dizem essencialmente o mesmo, porque inspirados na mesma Lei. Aceitei os três instrumentos. Tinha evidentemente de me munir deles, para ter voz nos Ministérios. Não me deixariam, tão pouco eu poderia, só por mim, fazer a demonstração do Incrível, sem primeiro me acreditar.

Cerca de três décadas depois, o anterior regime caiu e as exigências (da infância à velhice) são outras, nomeadamente a nível das crianças, adolescentes e jovens, com vários quadros legais protectivos do Estado. Surgiram, ultimamente, nomes novos para as medidas de promoção e protecção, e para os Lares, como: acolhimento residencial, estrutura residencial para idosos... Ressalve-se que, tendo por padrão a vida familiar, os pobres acompanhados, os rapazes e os doentes ao cuidado da nossa Obra decididamente não são utentes, nas comunidades de cada Casa e periferias... Dos novos Estatutos da Obra da Rua (aprovados oficialmente, em 2016), respigámos este significativo parágrafo, pois é claríssimo na matéria que nos adentrámos: O Estado Português respeitará a natureza, autonomia e identidade da Obra. Então, urge passar das palavras aos actos, não como tentativa de ramificação estatal. São de notar colaborações com vários serviços e entidades, mas considerando a especificidade e história da Obra da Rua. Contudo, importa acautelar as situações intrusivas e lesivas...

Não restam, pois, dúvidas legais e reais do serviço aos Pobres que Padre Américo legou, num percurso de oito décadas. Isto mesmo ficou reconhecido por quem de direito, depois do actual preceituado estatutário ter sido também aprovado pelo Bispo do Porto, D. António Francisco dos Santos, de saudosa e grata memória, na esteira de outros Bispos do Porto — D. Agostinho de Jesus e Sousa, e D. Júlio Tavares Rebimbas, que também deu início à Causa de Beatificação do Servo de Deus Padre Américo (e com cantinho especial no nosso coração!).

Para além de tal prudente aviso, bom seria que a carta de alforria da Obra da Rua não fosse uma miragem, para quem decide na sociedade civil e nas instâncias próprias; pois, afinal ajudará a pôr em prática mais seguramente actos discretos e concretos de Caridade, que é a missão própria confiada pelos Bispos. Este nome é bem mais rico do que a tal solidariedade... Na verdade, o belíssimo Hino ao Amor, de S. Paulo, não deve realmente ser letra morta para os cristãos e pessoas de boa vontade, mas para dar vida e em abundância, ao longo de toda a vida da pessoa humana, em especial a mais frágil — a menina dos nossos olhos.

Perante a sábia prevenção de Padre Américo, a cada passo, então é preciso parar, para se reflectir, escutar e olhar para a frente e o próximo, sem medo, num itinerário crucificado de ajuda e promoção dos Pobres, em Igreja e no Santíssimo Nome de Jesus. As tempestades levantam-se quando menos se espera, nos oceanos da eternidade. Porém, com ligeiros sinais, Jesus acalma as vagas alterosas da Nau frágil, segurando a mão de Pedro e dizendo: Homem de pouca fé, porque duvidaste? 

Padre Manuel Mendes