PÃO DE VIDA
A Caridade não se apaga
Porque se multiplicará a iniquidade,
vai resfriar o amor de muitos.
(Mt 24,12)
Esta afirmação de Jesus inspirou a Mensagem para a Quaresma de 2018 do Papa Francisco, desejando que a sua voz ultrapasse as fronteiras da Igreja Católica, alcançando todos os homens e mulheres de boa vontade, abertos à escuta de Deus. O seu convite é abrangente e bem claro: Se vos aflige, como a nós, a difusão da iniquidade no mundo, se vos preocupa o gelo que paralisa os corações e a acção, se vedes esmorecer o sentido da humanidade comum, uni-vos a nós para invocar juntos a Deus, jejuar juntos e, juntamente connosco, dar o que puderdes para ajudar os irmãos.
À luz destes sábios ensinamentos, ao entrar nesta quarentena quaresmal, alguém nos sugeriu que deixássemos também notas no papel daquilo que não pode (ou não deve) vir a público, nestas andanças de tribunais, hospitais e outros ais, por mor dos pobres. Neste ofício pastoral, há inúmeras situações e lamentações cujo lugar certo e seguro é o segredo de Deus. Porém, há gritos de dor e tantos gestos de bem que não se podem mesmo calar. Vamos dar um exemplo eloquente, mais adiante. Contudo, escutemos o que escreveu Padre Américo no final de 1954, num naco contundente de prosa sobre aflições dos pobres, como dilacerado, de que respigamos o intróito: Já lá vão quinze anos e ainda guardo a memória da sentença de um homem posto em autoridade: tratando-se de miséria social, o que se não pode remediar também não se pode dizer. E proibiu-me de falar dos pobres! Sempre tive para mim, e já naquele tempo tinha, que se a Autoridade não usa de justiça, não tem autoridade; por isso desobedeci - verbum Dei non est aligatum. Os pregadores do Evangelho têm liberdade de curar aos sábados, e de comer sem lavar as mãos. Deus será o inimigo dos seus inimigos. Deus aflige quem os afligir. A Verdade livra-os. Eu não podia tomar por boa aquela sentença. Que os mortos enterrem os mortos./ Se me tivesse calado era o traidor. Trair o melhor e o mais poderoso dos amigos: - Cristo Jesus. Oh desgraça!/ Isto foi há quinze anos na cidade de Lisboa, ao pé da estátua de D. José e do medalhão do Marquês. E, mais adiante, sobre as casas para os pobres, gritou bem alto: Vem lá o inverno. Abriguem os Pobres. Façamos aos outros o mesmo que gostaríamos que fizessem a nós e nisto mostramos que somos de Cristo. Comecem. Eu sou o procurador geral dos pobres. Não me posso calar. Tenho de ser inoportuno. Comecem.
Com este fogo de caridade, do Coração de Jesus, apenas uma centelha de gratidão, continuando a calar confidências e ainda alguns sinais de injustiça, cujos lugares são o foro próprio da escuta e da defesa da dignidade humana. É um belo testemunho, simples e eloquente, de quem se preocupou com o calor humano, no serviço clínico na cidade dos doutores, que o Amor é a maior ciência. Trata-se de uma excelente médica pediatra - Dr.ª Graça Rocha, oriunda do Montijo, já na glória do Senhor da vida, aos 62 anos. Teve um papel determinante na prevenção da transmissão vertical (de mãe para filho) do VIH e no acompanhamento de crianças e adolescentes infectados. É justo e reconhecido dizê-lo, nestas colunas, que foram vários os meninos nossos que cuidou com sabedoria e carinho, no Pediátrico. Por isso, foi com gratidão e emoção que nos permitiram numa Eucaristia colocar no candelabro a sua vida exemplar de entrega e dedicação aos doentes pequeninos e às suas famílias, e o seu trabalho em prol da infecciologia nacional. Empenhada na saúde infantil, teve também tempo para assistir com alegria, no Teatro Académico de Gil Vicente, à festa dos Gaiatos, com um cantinho especial no seu coração. Assim, fica para sempre no nosso coração a graça de sermos testemunhas da sua amizade e bondade. Com vidas tão expressivas como esta, de (com)paixão intensa pelos nascituros e crianças, o amor nunca se apaga!
E quando se desce para o Alto, avivem-se as consciências em Portugal por aqueles que padecem de qualquer mal sem cura, para que sejam bem cuidados e acompanhados na recta final. A Quaresma é essencial também quando há um deserto cultural, numa civilização que não defende a vida humana desde a concepção ao ocaso. Quem dera que as armas do Amor e das ciências pela vida ajudem a mover os corações e as acções vitais.
Padre Manuel Mendes