PÃO DE VIDA

HÁ 80 ANOS NO CEIRA

Nós fomos os pioneiros. Havia já, ao tempo, colónias de mar. De montanha não senhor.

Padre Américo


Foi um Verão desgraçado em termos de incêndios, pela vastidão de área florestal ardida e tragédias humanas, cujas feridas vão demorar a cicatrizar. Mete mesmo dó, ao percorrermos qualquer estrada e em várias direcções, ver paisagens outrora verdejantes transformadas em queimadas negras e sem vidas. Também no Funchal ficou enlutado Portugal. Pelo mundo fora, a ameaça do terrorismo (como em Barcelona) vai disseminando um clima de medo e no Médio Oriente e no Oriente não se calam as armas e insinua-se outra grande guerra. Deus nos livre de tal!

Com este contexto preocupante e em plena época de férias, em especial de correrias para o litoral, saímos a pregar com alegria em comunidades cristãs de alguns Pastores amigos, celebrando o Mistério da Fé no altar do Senhor da Vida: Árvore (Vila do Conde), Pedrógão Grande, Derreada Cimeira, Vila Verde, Tavarede, Figueira da Foz, Vila Nova do Ceira e Oliveira do Hospital. Aqui, tivemos de parar em Gramaços, numa bela e antiga casa de granito, de família amiga do tempo de Padre Américo.

Ainda na estiagem, com o alto da Senhora da Candosa por mira, lá fomos peregrinar às fontes com alguma miudagem em algazarra. Avessos a tanto barulho nocturno e de mau gosto, ecoando nos montes, em ofensas aos Santos, foi preciso continuar a registar no ADN da garotada deste tempo a memória de um acontecimento antigo (80 anos - dois carros de alqueire!), mas vivo e crucial no itinerário do Padre Américo, como servo dos pobres, quando o rastilho da II Guerra Mundial se acendia. Assim, celebrámos a Eucaristia, pela alvorada do último Domingo de Agosto, na Igreja de Vila Nova do Ceira com uma assembleia amiga e ainda recordada daquele tempo das férias de garotos pobres, como algumas velhinhas com mais de 90 anos e que conheceram Padre Américo na casa ao lado da Matriz da terra com o rio Ceira a beijar-lhe os pés, ao fundo da várzea. As suas Colónias de Campo do Garoto da Baixa de Coimbra, com a ajuda de estudantes do Seminário e da Universidade, levaram ao gáudio da gente miúda das ruas do Mondego, desde o Alva (1935) ao Ceira (1937), conforme explicou no Obra da Rua: A ideia já não cabe na estreita casa de S. Pedro de Alva; procuram-se novas instalações. Batemos à porta de conventos abandonados; palmilhámos redondezas em cata de casas grandes; e demos fundo em uma quinta adequada, a dois passos do rio Ceira. Este acontecimento deu-se há oito décadas, no interior da Diocese de Coimbra. A Obra ia ganhando dentes para a broa de milho que regalava rapazes desnutridos e vagueavam descalços e andrajosos pela lusa Atenas, in illo tempore, depois de Trindade Coelho.

Desse tempo e em manuscrito do seu punho, reservado, sob o título Colónias de Férias dos Garotos da Baixa - Sua história e sua vida, quais páginas de missão, reavivamos nesta coluna de gratidão outra vez um naco de bela prosa: A casa de São Pedro de Alva já não continha o número de rapazes que aspirava conduzir. Os rios Alva e Mondego eram longe. Outros inconvenientes apareciam, sendo a falta de água o maior de todos. Urgia mudar de poiso. Procurou-se casa e sítio adequado e deu-se em Vila Nova do Ceira, na quinta do Sr. Doutor Diogo Cortez. Para ali se conduziram 96 rapazes [em 1937]. Pedi nas igrejas de Coimbra, à hora da Missa, e fiz o mesmo na Figueira e na Curia e no Luso. Aqui, nos hotéis, por quanto o Pároco não consentiu que eu pedisse na igreja.

Na quinta da Costeira, do Senhor Doutor Diogo Cortez, estava-se perfeitamente à vontade, oferecendo o lugar todos os requisitos necessários para uma obra desta natureza. O rio Ceira ficava a cinco minutos. Animado, pois, com todas estas circunstâncias favoráveis à causa, para ali fizemos seguir cento e vinte e quatro rapazes, organizados em três turnos, durante sete semanas, dos meses de Julho, Agosto e Setembro [em 1938].

No ano seguinte, ainda para o mesmo sítio, conduzimos três turnos de rapazes, mais numeroso - 156 - e mais duradoiro. O povo do lugar já está muito mais familiarizado com os pequenos e espera-os com ansiedade. Vão dando várias ofertas, de coisas de sua casa, o que dantes não faziam.

O programa das férias desses garotos pobres era simples, retemperador e profundamente cristão: Era a boroa caseira. Era o caldinho quente e bem adubado. Era a resina dos pinheiros; e o amor do próximo, nomeadamente da criança sem lar. Aonde houver este amor, há necessariamente o olhar de Deus. E isso bastava-nos. Dessas Colónias de Férias, desde 1935, o Padre Américo foi registando as caravanas: Dos nossos livros de registo vêem-se na casa dos mil, os rapazes que beneficiaram. De 1937 a 1939, contaram-se 376 rapazes que viveram com alegria as suas férias nas Colónias em Vila Nova do Ceira.

Há 80 anos, no Ceira, ia ganhando corpo mais robusto a revolução do garoto abandonado, que remontava ao ano da graça de mil novecentos e trinta e dois, por mandato do seu Bispo de Coimbra D. Manuel Luís.

Este ano, com vários Rapazes em férias por outras bandas, depois de irem a banhos ao mar azul da Praia de Mira, ainda houve uma dúzia de garotos que festejou essa data redonda, vivamente, com correrias pelas margens de verduras pendentes sobre o Ceira, em que se deliciaram com banhocas refrescantes e um saboroso farnel à sombra de um olival para veraneantes. Os herdeiros, actuais, desse sonho real não queriam deixar as águas do Ceira antes do Sol posto. Porém, por estradas sinuosas e com infestantes a galgar as margens, num misto de emoção e consolação, na viagem de regresso, reinava a admiração pelos pioneiros que começaram a dar novos mundos ao mundo, nas Colónias de Campo para os filhos das vielas, becos e tugúrios na colina sagrada do arco da torre da vetusta Universidade, pois a verdadeira sabedoria que fica é a Caridade!

Nada perturbou o Recoveiro dos Pobres que palmilhou tantos caminhos por eles até ao derramamento de sangue duas décadas depois, entregando a sua vida, unido à paixão de Cristo! Mil anos a vossos olhos, Senhor...

Padre Manuel Mendes