História da Casa do Gaiato de Coimbra

 No final de tanto brincar, chegava o terrível ir embora; os últimos dias de Setembro vinham de cortinas negras; depois das vistas de fogo, a escuridão. Arrumar a casa, fechar portas, debandar.
Para onde?
Se toda a gente das cidades conhece o ardina da rua, de o ver nas ruas, poucos há que saibam aonde ele mora, muito menos como vive.
Os lugares clássicos da piolhice que em todas as terras têm nomes - e na de Coimbra se chamam Bairro das Latas, Quinta do Poço, Arco Pintado, Pátio dos Lázaros, Lojão, Casa do Inferno - São zonas tenebrosas, conhecidas somente de fachada, que lá dentro ninguém vai a não ser a polícia! Eu também lá vou por outras razões.
O garoto ateima que eu seja mãe e chama-me para tudo. Se algum companheiro adoece, os outros passam palavra e levam-me onde ele habita. Chegado que sou à porta, vai uma chusma deles atrás de mim. Vão tristes. São solidários. O amigo está doente.
O catraio da rua adoece por comer mal. A tudo ele resiste: frio, sol, aguaceiros, noitadas, sarna, tinha, maus tratos - tudo! Menos à fome lenta.
Entro. A mãe não está em casa. Pai, não tem. Um deles procura fósforos, acende um candeeiro e mostra: «Olhe ali!» Este ali é o sítio que os espera após a debandada das Colónias.
Há muito que me doía o coração de não poder comprar uma quinta que fosse deles, para eles, governada e amparada por eles, para os livrar do tugúrio em caso de doença. Queria trazer na algibeira um remédio sempre pronto, ao visitar o pequenino doente na mansarda ou ao vê-lo abandonado por doença ou incúria dos pais; queria receitar. Não podia sofrer por mais tempo o ouvir, no final das Colónias, «deixe-me ficar aqui, que a gente em casa passamos fome» - eu que sabia a verdade toda!
Não! Arrumar, fechar, ir embora - estas palavras tinham de ser riscadas; e em lugar delas, armar tendas no campo, como Pedro quis fazer outrora no Tabor, pois que os pequeninos também gritavam à urna: «É bom ficarmos aqui!»
As Colónias de Campo do Garoto da Baixa eram uma Obra incompleta e eu tinha medo que o povo lhe chamasse, como às capelas da Batalha, imperfeita, Eu mesmo sentia que algo lhe faltava.
A missão de visitar o Pobre tem beleza; é filha de uma intuição artística que apaixona e devora o visitador.
Quanto mais repelente for o estado e condição dos visitados, mais se enamora deles.
O artista verdadeiro é um crente, ele coloca na base de todas as suas criações a Beleza Incriada de Deus, sem o que produzirá fantasia que deslumbra, sim, mas não faz arte que comova.
O visitador do Pobre que também é artista, tem necessariamente de ser um crente. A sua linguagem há-de dizer que ele é da Galileia. A beleza da sua acção é polarizada no seio de Deus. Ele chama a todos irmão; e porque são da sua carne, tem pena dos mais desamparados. Como a galinha faz aos milhafres, assim ele dá sinal e quer defender os Inocentes debaixo das suas asas. Faz arte que comove, e não obra que deslumbre, o visitador de Pobres.
Transplantar o garoto da rua para terreno adequado onde ele se possa desenvolver e produzir bons frutos, é defender Inocentes. De tantos que tenho visitado no tugúrio, ainda não topei um só que me não fizesse soltar do coração o doloroso «ai meu filho onde tu dormes!». É no infortúnio que eu mais lhes quero.
O nível de vida da gente que mora nos aglomerados pobres, terra natal do ardina, mede graus abaixo de zero; e gela no que diz respeito a costumes.
Nos em que atrás se fala, bem como nos congéneres de outras cidades, o único remédio é edificar noutras paragens e destruir os casebres. Não que com isso esteja tudo feito, que a população não muda com a mudança! Mas, sim, fica terreno aberto à missão de evangelizar.
Há dez anos que trabalho na rua e nada mais lenho feito, em Coimbra, do que dar pão aos famintos, que eles, os tristes filhos da noite, de nada mais têm fome. Esse outro Alimento que Jesus propôs e quer dar às turbas por meio da acção sacerdotal, esse nunca mo pediram nem sabem do que se trata. Nem tão pouco o poderiam digerir sem que primeiramente tivessem flores no jardim, lume na lareira, roupa na caixa e conforto em casa. Ora naqueles sítios não há jardim nem há lareira nem há caixa nem há casa - terra natal do ardina!
Quando calha ser insultado ou até sovado por aquela pobre gente, retiro-me para outros sítios a fazer penitência dos meus pecados e deixo correr o marfim. Nem eu seria melhor nem tu, se vivêssemos como eles vivem.
Os pais aborrecem os filhos. Sei de alguns pequeninos que se vão oferecer espontâneamente às Tutorias, e sei de outros maiores que propositadamente furtam para ficar - tal o espectro da fome!
Não tenho autoridade para arrasar tocas nem posses para construir bairros, mas nem por isso fiquei com as mãos nas algibeiras. Quis transplantar o pequeno habitante do tugúrio em terreno adequado, tendo o cuidado de sacudir o torrão na soleira da porta! Quis e fiz. «O amor é mais forte do que a morte.» Comprei uma quinta para eles. Chama-se a Casa de Repouso do Gaiato Pobre.

(in Obra da Rua)