ERA O ANO I, N.º 17

 Ouçam o Pedro da Figueira

Como eu vim para a «Casa do Gaiato» e o que fiz antes de para cá vir. Eu quando o padeiro ia levar o pão a um andar eu ia ó cesto tirar uma carcaça e ia comê-la escondida na praia. Eu quando ia ao mercado mais os meus companheiros, eu punha um pé em cima de um melão e dava-lhe um chuto para trás para os meus companheiros o apanharem. Eu quando sentia apitar os barcos da sardinha ia logo a correr para a praia e depois de roubar muita sardinha levava alguma para casa e o resto vendia e despois levava algum dinheiro a minha mãe e guardava algum para alugar uma becicleta e eu quando via alguém da minha família cada vez corria mais. Eu também ia para a porta da tourada ver se entrava e às vezes lá conseguia entrar e ficava muito contente de estar lá dentro. Eu quando via o toureiro espetar uma farpa ó boi eu até dava saltos e eu gostava muito de ver agarrar à unha. Eu quando sentia apitar as barcas ia ver se era o arrastão para roubar arraias e enterrá-las na areia ao pé dum barco para despois vendê-la. Eu quando ia mais os companheiros ia ós figos e despois ia ó banho e os meus companheiros punham-me debaixo da água e eu gritava e tinha muito medo e despois pouco a pouco perdia o medo e já me atirava da ponte abaixo e agora já sei nadar e eu quando ia ó banho à praia punha a roupa à borda do mar para quando viesse o cabo do mar e pegava nela e fugia para o forte de Santa Catarina para baixo dos penedos para me vestir e eu quando estava vestido ia pedir esmola de barraca em barraca. Quando eu via o marujo fugia para os casinos para pedir também um tostãozinho. Quando eu via algum polícia eu fugia para ver se não era agarrado e fugia para o pé do mercado para pedir algumas uvas e algumas maçãs e às vezes era corrido dos guardas e despois ia para a praia comer o que arranjava. Às vezes quando tinha muita fome ia pedir de porta em porta. Agora estou na Casa do Gaiato onde há saúde, alegria e conforto. Bem hajam todos os amigos da Casa do Gaiato. Eu sou da Figueira da Foz e chamo-me Pedro João Sá Lebre.

Esteve muitos meses sem obrigação, sentado ao sol, a curar inúmeras feridas que o consumiam; e com alimentação cuidada. Arribou. É hoje refeitoreiro. Tem merecido ir vender o Gaiato à Figueira.

Chamam-lhe o Rádio, por falar muito e falar sempre. A carta dele é, até, uma das maiores que tem aparecido.

Já estava eu recolhido no quarto, quando oiço bater à porta.

- Quem é?

- Sou eu.

- Eu quem?

- O Rádio.

- Abre.

Abriu. Disse-me que tinha mais coisas para me dizer e se podia acrescentar a carta!

- Oh rapaz; deixa-me dormir!

Pai Américo