BEIRE

A nossa Personagem do Ano…

Lambarice nem sempre é pecadito de gula... É Domingo. O Maio refloresce com vigor. São 07:30h da manhã e o levantar, hoje, é só às 08:00h. O sol já desceu a serra de Louredo, a rendilhar de beleza este Valmezio onde a nossa quinta é. Atravesso a varanda emblemática da velha Quinta da Torre. Olho à direita e, lá ao fundo, na vacaria, vejo o Fernando e ouço as algaraviadas do Carocha e do Sem Nome. Andam atarefados a acarretar o penso da manhã para o gado - onze cabeças. Olho para a direita e lá anda o Jorge na rega dos seus mimos da horta; o Nelito a carregar o balde com a lavagem da noite para o pequeno almoço dos porcos. E o Carlitos, que sofre de obsessão compulsiva contra o lixo, lá anda a correr a quinta, de saco plástico na mão, a apanhar o lixo para o contentor.

Porque é Domingo, vou ao escritório buscar umas lambarices que prometi. Para lamber a beiça ao pequeno almoço, diz o Tirapicos. Dou graças por ainda haver tanta gente que, sobretudo no Natal e Páscoa, sempre se lembra de que há filhos de ninguém que também gostam de coisas boas como os fidalgos (filhos de alguém com algo...). Lembro Pai Américo, que gostava de dizer que "a boca dos pobres é igual à boca dos ricos" e que "também os pobres, às vezes, têm necessidade do supérfluo". Hoje, até já a psicologia descobriu que, de vez em quando, todo o homem tem necessidade de emoções fortes. Que, afinal, podem ser colmatadas com uma lambaricezita... E logo a psicologia acrescenta que, quem não consegue satisfazer essa necessidade de emoções fortes pela via do positivo, irá procurá-lo por vias tortuosas. Ai a falta que faz nem sequer conhecer o primeiro mandamento de valor universal - conheça as suas necessidades e o nível delas...

Desço ao refeitório / cozinha e vejo o Nána já de volta do fogão a preparar o leitinho com chocolate para o pequeno almoço da comunidade - de que é o "chefe maioral". Perto dele, está o Paulo Jorge, já de volta da vacaria, com as bilhas cheias do leite fresco que ordenhou das vacas. Apressa-me para o ir levar ao Calvário. De carro. Ele e o leite. Porque o carro sempre lhe dá um estatuto de leiteiro fino...

Na vida desta Casa, tudo me fala de tudo. Os nossos meninos ainda não desceram das camaratas. Estou sozinho — em silêncio e quietude — a tomar o meu pequeno almoço. Coisa rara. Saboreio este ouvir os ecos do meu interior. Porque é Maio — mês de Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe do Céu, sinto mais a falta de uma mãe nesta Casa. Sobretudo à noite, antes do deitar e, de manhã, antes do dispersar. O carinho do deitar mai-lo sorriso alegre do levantar. Sinto muito essa falta de uma mãe, numa família destas. Porque eles, que não tiveram a mãe que os amasse lá trás, atempadamente, no dizer de S. João Evangelista (1 Jo 4, 20), ficaram como que incapacitados para compreender / sentir o amor da Mãe do Céu. E de amá-l'A e se Lhe confiarem em momentos de crise. Por isso precisam tanto de alguém aqui na terra. Alguém que encarne Maria de Nazaré — quer em Belém, a mimar e a cuidar, quer junto à Cruz, a sofrer com... Eles têm as idades que têm (entre os 30 e os 60), mas são (por isso se comportam como tal) umas autênticas crianças grandes, esfomeadas de carinho. Biofísica e psiquicamente pré+dispostas a disparar torto, se o não encontram. Crianças grandes a resvalar cada vez mais para o desgastadas. Que, também nelas, os anos não perdoam.

Assaltam-me cada um dos rapazes e cada um dos nossos doentes. Dói-me vê-los assim desprotegidos, em matéria tão delicada. Vê-los, cada um a seu jeito, sempre a mendigar atenção. Tão abandonados ao seu abandono... É fácil dar de comer, dar banho e afins. Com um Faneca, uma Glória, uma Tina ou um Lino, parece que essas são quase as únicas portas de entrada no mundo deles. Dói-me não poder dar-lhes uma mãe. Dessas que, não gerando no corpo, se deixam engravidar no coração e, chegada a hora, vão dando à luz a Festa da Vida que aqui sempre refulge, entre eles, em momentos mágicos. Num olhar, num sorriso, num estender a mão, num inclinar a cabeça a pedir a festinha... Mães! Uma lá em cima, no Calvário, e outra cá em baixo, na Casa dos Rapazes. Todos da grande Família dos sem família. Todos a pedir cuidados de mãe...

(...) — Tu me fazes ser eu... No escorrer de pensamentos e emoções, salta-me a história daquela família numerosa: nove filhos, casados, quase todos já com filhos. A mãe, com muitos anos e viúva, nas férias do Natal, gostava de reuni-los a todos lá em casa. Desde meninos que tinham este bonito costume: na sobremesa daquele repasto familiar, por rigorosa votação, era eleito entre todos os membros da família, o personagem do ano... A mãe, enquanto servia cada filho, discretamente mas com muita curiosidade, perguntava a cada um em quem iria votar naquele ano. Todos respondiam que iriam votar numa cunhada, num irmão, no último bebé que acabara de nascer...

Chegava a sobremesa e, com ela, a hora da votação. Contavam-se e recontavam-se os papelinhos. E aquela mãe, com uma satisfaçãozita muito mal dissimulada, via que em cada um dos papelinhos era ela a eleita. Todos os anos, por unanimidade, a Personagem do Ano era a mãe.

Um admirador