BEIRE
… "Enfesados" mas floridos
A CORRER, NUMA AUTO ESTRADA... O mês de Março já vai para lá de meio. Um Março marçagão - manhãs de Inverno, tardes de Verão. A Primavera está atrasada pelos rigores do Inverno, mas não desiste de tentar mostrar-se como a rainha das quatro estações do ano. Vou na A41, onde passo tantas vezes, a caminho de Leça — meu poiso primeiro. Este aqui, em Beire, é só por paixão e por compaixão. Quase as 16h00. O sol, lá no alto, começa a inclinar-se para poente. Parece brincar comigo. Ora se esconde por detrás das nuvens ora se mostra naquela sua especial beleza, depois de uma borrasca. De repente, mesmo à velocidade dos 120 km/h permitidos por lei, os meus olhos como que param extasiados. É um campo que, ainda há bem pouco era o nabal de uma exquinta. Mesmo ali ao lado da auto-estrada. Num terreno ainda amanhado à maneira dantes. Onde há bem pouco andava um cavalo a pastar, ou um tractor a fresar a terra. (Que bonitas estas minhas doces recordações da infância. Obrigado, ó Deus, por este meu "cheiro a ovelha"...).
Naquele misto de paisagem rural, já cercada pela invasão citadina, destaca-se uma larga pincelada de amarelo. Pelo brilho do sol depois da chuva, aquele amarelo prendeu-me - os olhos e o coração. Pode haver quem lhe chame amarelo de ovo, amarelo canário, amarelo sei lá de quê (...). Nada disso chega para dizer o sedutor / reluzente amarelo que ali era, àquela hora. Muito menos dizer, nem só um chisquinho, do que aquela doce visão desencadeou em mim. Mesmo à velocidade que ia, aquele flash foi comigo, estrada fora. E, dali, me levou ao Calvário. E a muitos outros cantos de mim. Porque é do Evangelho que onde está o teu tesouro aí está o teu coração... (Mt 6,19-23).
HÁ UMA BELEZA QUE BUSCA INCARNAÇÃO. Aquilo tinha sido um campo de nabos. Que alegraram muita gente - ai que ricas sopinhas!... Mas os nabos que não mereceram préstimo para venda nem para gastos de casa ficaram práli. Enfezados. Parece que inúteis. Abandonados num campo à espera de... Entretanto, a beleza instalou-se ali e acordou em mim aqueloutra Beleza de que também eu (e tu que me lês) estou (estamos) amassado(s) — a Beleza Incarnante e Incarnanda... Sempre à espera de quem lhe dê vez e voz para se incarnar como, naquela longínqua Manhã de Páscoa, se incarnou, em Jerusalém... Uma Beleza que não para de buscar sítio onde possa revelar-se através do divino para que todos estamos vocacionados. Por nascimento. Crentes ou descrentes. Porque lhe basta só um pouquito de humanidade para que possa dizer-se-nos, num convite a empurrar o mundo para a frente.
DE VOLTA AO MEU CALVÁRIO... Olho cada um dos quarenta e quatro actuais residentes. E as muitas centenas que por aqui passaram e que o Senhor da Vinha já colheu. Mentalmente, perpasso pelo nosso Campo Santo, mais os registos em livro pela mão de P.e Baptista. Tudo a falar-me de enfezados — de corpo e/ou de mente. Mas todos me falam dessa Beleza, (Verdade e Bondade!) que alguém soube DES+cobrir neles, para mostrar ao mundo que teima em não ver...
Enquanto o carro come os kms que me faltam, deixo a minha mente mostrar-me cenas e mais cenas do nosso dia a dia. Umas que se podem ler e reler, descritas por mão de mestre na pena de Pe Baptista. Em qualquer dos 3 volumes de crónicas que tendes à vossa disposição. Outras que os meus olhos presenciaram. E muitas mais que, todos os dias, posso auscultar-lhes aqui — se eu mesmo me der tempo e coração para isso:
a) Vejo a Rosalina a dar a mão ao Faneca, acompanhando-o cá de baixo lá para cima - onde cada um mora. Ela no pavilhão das mulheres, ele no pavilhão dos homens. Dos dois, qual deles o mais enfezado — a lembrar-nos do até onde pode chegar a nossa desumanização. Nenhum deles fala nem sabe estabelecer relações propriamente humanas. As suas acentuadíssimas deficiências não lho permitem. Mas os dois, quando as suas condições de vida lhes dão para tal, estabelecem connosco belíssimas relações divinizantes e divinizandas. Quantas vezes já senti que Ele me tocou através destes nossos doentes.
b) Estou a com+TEMPL+ar o Chico — ceguinho, corcunda até dizer basta, com alguns sons/grunhiditos de tentativas de comunicação. Com nomes que lhe são familiares no cuidar dele — Báaabá, Riiiki, Béeele... Se me sente por perto, logo inclina a cabeça para eu lha coçar, afagar. E ele logo vai esgadanhar. Às vezes, se está livre e pressente que o Carlos está, mesmo ao lado, a dar de comer ao Faneca, começa a apalpar terreno e, encontrando alguém, reclina-se todo no seu regaço como qualquer bebé no colo da mãe...
c) Passo pelo Diamantino, que não quer sair da cama - Estou bem aqui. Até morrer. É um ex-trabalhador da construção civil que, ao cair de umas obras, ficou tetraplégico. E sem ninguém no mundo para cuidar dele. Chama mãe à senhora que, em cada manhã, o vem tratar. Se ela não está e vem outra, diz a cachopa... Se, por esta ou aquela razão, não está por ali ninguém de serviço, e nós avançamos a servi-lo no que precisa, mal ganha confiança connosco, sorri agradecido e diz muitas vezes que você é boa pessoa...
Quem passa por aqui, como aprendiz da arte de ver com os olhos do coração (e da fé, que ainda vê mais adiante...), consola-se só de ficar apanhado por estas cenas humanas em que esguicha tanto sabor divino.
Um admirador