UMA CARTA

«No Verão de 1988, a propósito de um convite que era feito no jornal O GAIATO (que recebo há mais de 60 anos), necessitavam de voluntários para ajudar no Verão. Resolvi tirar uma semana das minhas férias, telefonei, combinei e desloquei-me de Lisboa, de comboio e de camioneta, e apresentei-me no norte, no Calvário, tinha 51 anos na altura.

Fui recebida com simplicidade e gentileza, e foi-me destinado um serviço leve, no lado feminino, que consistia em dar as refeições aos doentes que não o conseguiam fazer sozinhos, lavar-lhes a cara e as mãos, antes e depois de cada refeição (outras higienes não eram feitas por mim). Cantava ou contava histórias e conversava com todas; duas vezes fui brindada com um banho de sopa e de outra comida, seguido de uma risada, e depois de um sorriso de inocência.

Era um outro mundo, um outro universo, diferente do meu quotidiano.

(...) Enquanto cumpria a missão que me tinha sido dada, observava e ficava espantada com a harmonia num meio tão complexo.

Por aquilo que vi, a limpeza da casa funcionava da seguinte forma: a senhora que se movimentava na cadeira de rodas, e tinha raciocínio, ia dando indicações à que tinha capacidades físicas, mas não mentais; indicava como e onde limpar o chão. As camas, como mudar a roupa ou a forma de a colocar correctamente, e assim, aquela cama e espaço ficava pronto e passavam à seguinte. Eram duas senhoras em cadeira de rodas a orientarem e duas a escutarem as orientações, e assim, a casa ficava arrumada e limpa.

Depois de tudo arrumado iam para os cadeirões que havia num corredor ao ar livre, descansar, conversar, rir ou simplesmente apanhar sol. Isto tudo era no primeiro andar e havia união entre todas, nunca vi zangas, estavam irmanadas.

Eu tinha liberdade de andar por onde quisesse.

No piso térreo, existia um grande estendal coberto (por causa da chuva), onde a roupa era pendurada. Havia uma rapariga encarregue de pendurar a roupa, gostava de conversar com ela, era engraçada. Numa tarde, fui conversar com ela e ia ajudando a entregar-lhe a roupa. E ela contou-me: "Uma senhora veio aqui visitar o Calvário e viu-me a estender a roupa, e conversou comigo, viu que eu era cega, e no fim disse-me coitadinha. Eu não gostei que me chamasse coitadinha e respondi-lhe: - Eu não sou nenhuma coitadinha, eu faço o meu trabalho bem feito, estou na minha casa e estou muito feliz; e a senhora ficou calada". Eu também, e continuamos com a roupa.

(...) No sábado, foi uma alegria, vinham pessoas das redondezas ajudar ao banho geral... Eu só ajudava às mais pequenas, habituada a pegar numa caneta, ficava espantada com tanta força e também tanta generosidade. Existia ali uma família especial, mas existia.

A pessoa que primeiro me recebeu, foi uma senhora, com um ar e gestos finos, tinha vindo de África, e ajudava na orientação da parte feminina. Os voluntários também tomávamos as refeições juntos; havia um sacerdote, uma pessoa aparentemente discreta, mas com o tempo, fui-me apercebendo que por detrás de toda aquela harmonia que eu observava, havia muito trabalho de organização, inteligência, psicologia, bondade e de amor.

(...) Ando há imenso tempo para dar testemunho da minha experiência ao jornal O GAIATO: "Eu estive lá, eu vi, eu vivi e não voltei a ser a mesma". Proporcionou-se agora pelas circunstâncias, a que este testemunho fosse mais alargado.

Quando Portugal era um "País Pobre", a Obra do Padre Américo matou a fome a muitos portugueses, ajudou à construção de muitas casas com o Património dos Pobres.

Ajudou muitos rapazes, provenientes de famílias pobres, desestruturadas ou por acidentes da vida, e que necessitavam de ajuda, e encontraram na Obra da Rua o que necessitavam para se tornarem homens dignos, com profissões diversas, alguns com cursos médios e também superiores, ensinou-os que o trabalho pode e deve ser um motor de Alegria.

Que eu saiba, a Obra da Rua não é pertença do Estado mas faz obra social, é pertença dos sacerdotes que a mantiveram de pé e de parte do Povo deste País, que durante todos estes anos participou na sua manutenção.

(...) Com tantos problemas que existem com os idosos em Portugal, para resolver, porquê o ataque a uma instituição de cariz especial que estava estruturada?

(...) Desejo que rapidamente a família "Calvário" seja reconduzida à sua Casa de Família, e unir-se aos que a estimam e lhe têm amor.

É próprio de pessoas de bem, reconsiderarem, e fazerem justiça ao que é justo.

(...) E também gostaria que os sacerdotes e os colaborados da Obra do Padre Américo, fossem tratados com respeito que merecem, fico aguardando com esperança que tudo se resolva com a Paz de Deus.

Assinante 9245.»