SINAIS

Padre Telmo Ferraz

1. Eu conheci o Padre Telmo primeiro pelos textos, que eram publicados n'O Gaiato, e pessoalmente só desde Setembro passado, convivendo com ele durante o tempo sabático que vivo no Calvário de Beire.

2. Quando estive no Seminário Maior do Porto assumi um dos muitos jornais O Gaiato que para lá eram enviados, alguns acabavam por nem sequer sair do invólucro em plástico que os carrega, e fiz-me leitor assíduo do jornal. Assumir uma realidade é colocar o nosso nome nesse mesmo empreendimento. Um parto difícil. Nem sempre ausente de ambiguidades.

3. O Padre Telmo continua a ter uma vida fecundíssima. Às vezes brinco com ele e nomeio-me seu secretário: atendo uma chamada e passo-lha, leio-lhe uma mensagem escrita no telemóvel, partilho um WhatsApp, agendo uma visita, fazemos uma conferência Zoom. As vidas fecundas são vidas que nunca se esgotam. Vidas que não tiram lugar aos outros. São ninho para quem apareça a sobrevoar as nossas existências.

Não desenharei a biografia do Padre Telmo, para isso há o título, O Homem que do lodo fez estrelas, do Professor Henrique Manuel Pereira, da Escola das Artes da UCP. A obra e o autor. Eu digo ao Padre Telmo que ele é um panteísta. Um herético. Mas é preciso saber muito para ser herético. E ele é um sábio. Sabe olhar a natureza como ninguém, sabe falar com ela, sabe cuidá-la e sobretudo amá-la. Ama a natureza das plantas e dos animais e a natureza humana. Os seus meninos, os seus gaiatos, os seus filhos. Quase que me atrevo a dizer que o Padre Telmo e os seus livros são precursores da Laudato Si do Papa Francisco.

A experiência que o modelou profundamente foi o acompanhamento espiritual e humano dos barragistas no Douro e mais tarde no Quanza. Picote e Cambambe, Portugal e Angola, os seus chãos, as suas pátrias. O Padre Telmo deixou-se escavar interiormente pelos marteleiros que acolhia em situação de pobreza extrema. Procurar-lhes um tecto, garantir alimentação quando não a tinham, cuidar da saúde dos mais débeis e garantir educação e recreio para os filhos deles foram a sua grande preocupação. Isso moldou-lhe o coração e a alma, dons que trazia da família de sangue e da família cristã da Igreja em Bragança em doses incomensuráveis. Foram os barragistas, dos marteleiros aos engenheiros, que lapidaram os atributos da bondade, do sorriso, da caridade e da inteligência evangélica.

O Padre Telmo é um homem do II Concílio do Vaticano. Amassado na realidade a salvar, deixou-se inquietar pela grande intuição do Papa Paulo VI: Igreja que tens a dizer ao Mundo; Mundo que tens a dizer à Igreja? Nas aulas de teologia sacramental, em que tive como professor o actual bispo de Leiria-Fátima, Cardeal António Marto, ele ensinava-nos, num apartado, a estrutura antropológica dos sacramentos. Os sinais salvíficos da Igreja têm uma base humana, sociológica, cultural e histórica muito grande. Eu queria falar do Padre Telmo como um sacramento-vivo para nós. O II Concílio do Vaticano refletiu de forma ampla e profunda (PO, proémio) sobre a identidade do sacerdote na ordem dos presbíteros e na sua opção fundamental que precisa de ser formada, porque sabe que a desejada renovação de toda a Igreja depende, em grande parte, do ministério sacerdotal, animado do espírito de Cristo (OT, proémio).

O Padre Telmo é um sacramento-vivo porque é um discípulo atento e fiel de Jesus e do Pai Américo. Estávamos nos anos sessenta do século passado, precisamente quando o Padre Telmo dava os primeiros passos na sua missão de pastor e cura de almas. O Padre Telmo completou este ano 70 anos de vida sacerdotal. Os padres são homens retirados do mundo para serem formados e enviados de novo ao mundo. Há na vocação sacerdotal um desprendimento do que é legítimo possuir: casas, terras, irmãos, pais, nome, títulos (cf. Marcos 10,30) para ser dado aos outros em multiplicação infinita
(cf. Mateus 19,29). O padre não é um solitário, ainda que viva só, é um homem de comunhão com os outros padres e com as pessoas a quem serve.

Sabemos que o sacramento é um sinal visível de uma realidade invisível, uma actuação de Deus através da Igreja a favor da humanidade inteira. Acção que junta palavra e elemento e o sacramento acontece. A celebração litúrgica/dramática gera o acontecimento salvífico. Assim é o Padre Telmo. Um sinal/sacramento-vivo do amor universal de Deus por todas as criaturas, sobretudo as crianças órfãs e maltratadas, muitas para quem ele construiu uma Casa em Malanje. Lugar onde pudessem ser família na mesa do refeitório e no altar da capela. O sacramento tem a capacidade de abrigar, guardar tudo o que deve permanecer oculto: a violência do sacrifício que o sangue, a água, a aliança, o pão e o vinho, o óleo, o perdão contêm. É um véu, que veste e desvenda a realidade. O sacramento e o sacramento-vivo carregam os pecados dos outros, mas transformam-no em vida. Em muitos dos episódios que o Padre Telmo nos escreve e descreve percebemos-lhe a dor, mas lemos aí a esperança e o perdão. O único necessário num verdadeiro sacrifício é o perdão que alcança a caridade e esta dignifica aqueles a quem se roubou a dignidade de filhos de Deus. Ele é um sinal/sacramento porque, como escrevi no prefácio à obra não aponta para si. A realidade que sinaliza é outra: o seu amigo Jesus. Quantas vezes ouço esse murmúrio, esse mantra, Jesus, Jesus, Jesus! O nome santo repetido vezes sem conta na despedida da capela. O resto é silêncio e como é bom perceber que tudo ACONTECE assim.

4. Em 2017 fui a Angola. Estive na Casa do Gaiato e não me cruzei com o Padre Telmo. Já tinha entregue o seu lugar de patriarca ao Padre Rafael. Visitámos na ocasião as quedas de água de Kalandula, antigas quedas do Duque de Bragança. Nessa visita deram-me a conhecer uma menina que tinha o nome de Acácia. Era linda, mas tinha uns olhos enormes e tristes. O pai tinha-lhe batido porque não havia preparado a comida. Perguntaram-lhe porque não o fez. Ela respondeu, cabisbaixa, que o pai não tinha comprado o carvão. Não era o golpe na mão que a tornara triste. Era a ausência de quem devia estar sempre presente. A presença paterna do Padre Telmo aos meninos abandonados da Obra da Rua torna impossível aquele olhar triste. Hoje são homens que sorriem e sabem ser agradecidos. Isto é um grande sinal. Isto é um sacramento vivo. Este é o Padre Telmo.

5. O livro ainda pode ser adquirido (dos mil exemplares só restam 100):

•  Livraria Paulinas, Rua de Cedofeita - Porto (222 054 956; liv.porto@paulinas.pt);

• Modo de Ler, Praça Guilherme Gomes Fernandes, 43 - Porto (222 010 458; mododeler@gmail.com);

• Casa do Gaiato de Paço de Sousa - Penafiel (255 752 285; geral@obradarua.pt).

Padre José Alfredo