SETÚBAL

Polícias e ladrões

Ontem, já noite escura, chegava da cidade bastante triste com a incompreensão de quem se quer promover à custa dos mais indefesos. Com a minha dificuldade em sair do carro, demorei-me mais um pouco. Estacionava no passeio do jardim, sala de recepção a quem chega a esta Casa. O lusco-fusco da hora era cortado pelos projectores plantados na raiz das laranjeiras, irradiando luz pelas árvores acima, mas deixando escuridão por todo o ambiente. Atrapalhado em pôr-me de pé, sinto uma lufa-lufa de miúdos em correrias uns atrás dos outros e com o frio que já sentia, não me contive sem interromper: - Eh!... quem vai aí? - Nisto surgiu-me o Nelo que se aproxima, suado e esbaforido, mal podendo falar: - Sou eu sepadacilo, andamos a jogar aos polícias e ladrões.

A criança suava por todos os poros da cara no princípio daquela noite que começava a esfriar. Passam mais dois pelos carreiros de calçada no meio da relva em grande correria. Então? - Quem são vocês? - Resposta pronta sem folego: - Somos ladrões andamos a fugir dos polícias - numa frase que mal percebi.

No meio de tanto frio a amplidão e a beleza do jardim enchia-lhes a alma de festa e aliviava a minha amargura.


Aviões

Ainda os mais pequeninos. São os do 2º, 3º e 4º ano do Ensino Básico. Entram na escola às 9 horas, numa povoação próxima chamada Montinho da Cotovia.

Entre o pequeno-almoço e a saída para as aulas, num dos nossos carros, há um intervalo de tempo que é preenchido com o limpar da sala de jantar e pôr as mesas, só com 14 lugares porque a maior parte dos rapazes almoça na escola ou nas empresas, poucos em Casa. O tempo que lhes sobra é para arranjar a mochila, rever alguns trabalhos de casa e brincar no refeitório que as senhoras não os deixam ir para a rua por causa do frio da manhã. Para que eles possam ter à mão folhas pautadas para os seus apontamentos ou cópias, o Hélio deixou na sala uma resma de papel de linhas A4.

O que aconteceu? Que havia de lhes surgir na imaginação? Com aquelas folhas fabricaram aviões e, de um lado frente ao outro, organizaram uma batalha aérea que lhes causava um delírio de alegria de grande explosão!

Se um avião batia no outro e os dois caíam no chão, eram saltos e gritos de nunca mais acabar de tal maneira que a senhora na cozinha, contígua, se aborreceu, agarrou num saco comprido de plástico transparente, apanhou os aviões derrotados e vitoriosos e encheu o saco e guardou para me mostrar.

Naturalmente que eu achei imensa graça. Até me apeteceu ir à internet e dizer aos grandes senhores, donos das fábricas de aviões no mundo, informá-los que nesta Casa se constroem os ditos para todos os gostos e que nos podem enviar as suas encomendas.

À noite, houve tribunal e o chefe, por eles terem estragado as folhas de papel na brincadeira, castigou-os a apanhar as folhas das árvores, caídas na relva do jardim, no sábado depois do almoço, tempo livre para toda gente nesta Casa.

Ora vejam, senhoras e senhores, como entre nós a técnica está evoluída.

Padre Acílio