PATRIMÓNIO DOS POBRES

Nunca me tinha passado pelo meu ser uma situação de tráfico humano. Ouvir falar e ler muitas vezes notícias sobre este crime é uma postura, agora passar por ela é outra muito mais dolorosa e extravagante.

Em Sevilha, Espanha, aliciaram uma rapariga com trabalho na cidade de Setúbal. Esta caiu na armadilha e dois homens ainda novos, não só lhe ofereceram transporte no automóvel como lhe garantiram trabalho nesta cidade. Fizeram dela o que lhes apeteceu, moeram-na com pancada e abandonaram-na na cidade, fugindo cobardemente. Apareceu-me após a celebração da Santa Missa ao começar da noite, a contar-me a sua triste sorte; já eu estava no carro que me conduz a casa aonde me abrigo. Veio-me logo à ideia que poderia ser uma artimanha de alguém que me queria explorar e não liguei muito à hipotética tragédia que a vitimava.

Ela foi à polícia que nada fez, além de a informar que havia por detrás da esquadra um padre que a poderia ajudar. Foi à Segurança Social que não a socorreu, segundo o seu relato por não poder, em virtude da situação de estrangeira. Bateu à porta de várias igrejas em vão, voltou de novo à minha presença, após dias, extenuada e abatida a implorar que lhe valesse, que dormira por esmola em casa de uma família que a acolheu, e até lhe dispôs de roupa, pois estava toda encharcada da chuva que caíra naqueles dias.

Como ajudar uma pobre rapariga nestas circunstâncias? Que fazer? Se não encorajá-la a voltar para a sua cidade, Sevilha.

Em casa arranjamos uma merenda, pagamos o transporte e aliviamo-la daquele terrível pesadelo em que se metera.

Numa cidade com a dimensão de Setúbal, não haver nenhuma instituição oficial para socorrer problemas como estes, é muito triste. Ainda surgiu uma família pobre que se doeu dela, lhe deu roupa e oportunidade de descansar e lavar-se.

Os samaritanos são raros nesta terra, mas de forma escondida ainda aparecem. Felizes os ditosos de sentimentos compassivos!...

Estamos na Quaresma. Tanto este tempo como a Páscoa é para toda a humanidade. Quer de uma forma quer de outra, todo o Homem sente a abertura destas épocas e a todos é dirigida a Palavra do Senhor com a autoridade que só Ele tem.

O Jejum que eu quero não será antes quebrar as cadeias injustas, desatar os laços da servidão?r em liberdade os oprimidos e destruir os jugos? Não será repartir o teu pão com o faminto?Dar pousada aos pobres sem abrigo e não voltar as costas ao teu semelhante? Então a tua Luz despontará como Aurora! Preceder-te-á a tua Justiça e seguir-te-á a Glória do Senhor! Se tirares do meio de ti toda a opressão o Senhor será sempre o teu Guia e tu serás como um jardim bem irrigado, como as nascentes cujas águas nunca secam. Reconstruirás ruínas antigas e levantarás alicerces seculares, chamar-te-ão reparador de Brechas.

Um dos aspectos mais vivos, na sociedade de hoje, entre nós é o desprezo que o Estado dá aos pobres no que se relaciona com a habitação e a saúde. Tenho sido desgastado com doentes a precisarem urgentemente de serem intervencionados, e o Serviço Nacional de Saúde nega-lhes oportunidade.

Quase os condena à morte. Os doentes vêm ter comigo destruídos pela dor e condenados se não forem atendidos, por isso tenho pago várias intervenções cirúrgicas feitas em hospitais particulares, a pobres que sem a ajuda do Património já teriam morrido.

A Quaresma não é um tempo de palavras como fazem hoje os políticos, mas um tempo de obras e acções dirigidas aos que nada têm.

Padre Acílio