
PATRIMÓNIO DOS POBRES
Hoje trago para o Património um caso de extrema pobreza, antes porém, queria declarar aos meus leitores, o que entendo por pobreza extrema: É a gente não ter nada;Nem para morar, nem para comer, nem para se curar, nem trabalho, nem família, nem amigos!... — É ser o que esta sociedade criou de pior: um ou uma sem-abrigo.
Paguei dois meses de renda de casa a uma pobre, abandonada e ameaçada de morte pelo progenitor da sua filha: 1000.00€. Só, com uma criança pequenina, não conseguia sequer ganhar para comer.
Conheço esta mulher desde os seus 14 anos de idade. Teve de tomar conta dos seus irmãos porque o pai foi preso e a mãe desandou para a vadiagem. Todas as semanas ou quase todas, durante dois anos, levamos comida, roupa e o mais que ela precisava.
Vivia numa casa da Câmara arrendada pelo pai a preço meramente simbólico. Admirava a tenacidade da rapariga, e o cuidado com os irmãos mais pequenos. Ela fazia de mãe apesar da sua tenra idade. Esta atitude afectuosa pelos manos, tornava-a muito simpática para mim. Estava sempre em primeiro lugar no meu coração e sempre que podia ou tinha algo especial para dar, lá ia eu à sua porta. Tocava a buzina do carro, ela vinha à janela do primeiro andar, descia e eu entregava-lhe o avio, os doces, os iogurtes e mais o que havia com fartura na Casa do Gaiato.
Às tantas, tendo ela já 16 anos, entregou os irmãos à mãe e desapareceu.
Passados largos meses vim a saber que tinha ido com um namorado para Castelo Branco, entregue os seus pupilos à mãe, a qual vivia numa população perto do Barreiro. As vizinhas contaram-me que ela estava farta de aturar os pequenos e foi fazer a sua vida longe da cidade, com um moço seu conhecido.
Passaram-se uns 4 anos e um dia atendo o telefone e oiço do outro lado: — É fulana. Você não se lembra de mim?!... Respondi negativamente. E era verdade, já não me lembrava. Entretanto aparece-me no lugar onde atendo normalmente os pobres. Mais forte, mais mulher, com uma criança ao colo. — Já não se recorda de mim? Sou fulana, precisava tanto de falar consigo.
A sua necessidade era desabafar e pedir. Contar-me a sua trágica e terrível aventura com o namorado, que não trabalhava, lhe batia e a ameaçava de morte se ela fizesse queixa dele a qualquer autoridade. Que vivia debaixo de um grande terror, contínuo, sem saber como fugir nem para onde.
Um dia em que o namorado saiu com a irmã dele, para longe de casa, encheu-se de coragem e pôs-se à boleia com a menina ao colo. Veio para a sua terra, para o seu bairro com o dinheirito que conseguiu e alugou uma casa nos arredores dos seus conhecimentos, pagando apenas a entrada.
Agora, implorava o pagamento de dois meses e eu dei-lhe 1.000.00€, avisando-a que não contasse mais comigo pois não me era possível. Os meses passam-se num instante e, quem paga renda sabe muito bem, como o dia 8 de cada mês aparece quase sem darmos por isso. E com esta invencível crise de habitação, uma casa é cada vez mais cara e mais escassa.
Tenho ajudado algumas famílias mais desamparadas a comprar casas, por valores mais baixos, dando-lhes o que os bancos lhes exigem para fazerem o empréstimo, pagando as escrituras, etc. Pelo gozo imenso que eu tenho, em ver uma família pobre com a sua casa, e mais a pagar ao banco, muito menos que ao senhorio. Ajudar um mês ou dois, uma família ainda vá lá, mais ninguém, a não ser doentes e inválidos.
O Património dos Pobres tem sempre em vista perseguir e acabar com a extrema pobreza tanto quanto possível.
A minha heroína voltou a bater-me à porta, mas ela não se abriu. Eram mais dois meses. — Filha não tenho dinheiro e o que tenho está comprometido. Dei-lhe 40.00€ porque àquela hora e eram duas da tarde, a sua bebé ainda não tinha comido nada. A senhoria mudou-lhe a fechadura e pô-la na rua com a criança. Hoje, veio chorar para o pé de mim: — Ai! a minha vida!... Que hei-de fazer à minha vida?!... — Dormi sentada numas escadas. Com um cobertor cobri a minha menina, ela dormiu ao meu colo, mas eu não. Estou exausta!
— Oh mulher, vai à Segurança Social, vai à Câmara que prometeu mais de 6.000 casas!
Ela foi naquele dia, duas vezes à Segurança Social, chorou, clamou e nada. Disseram que haviam telefonado para todas as instituições de acolhimento, e tudo estava cheio, sem uma única vaga.Voltou para a Câmara a chorar, com a menina ao colo e puseram-na na rua com a criança, chamando forças policiais. Isto só visto porque contado não se acredita.
Paguei-lhe um quarto para ela dormir. A casa é pobre, mas ela tem um tecto e uma cama para não passar na rua, esta noite chuvosa, fria e trovejada.
Ao que nós chegamos, meu Deus!! Os pobres estão desgraçados numa época destas.
Padre Acílio