PATRIMÓNIO DOS POBRES

No Tempo Pascal fica bem falarmos da alegria. Que o Senhor Ressuscitou é uma verdade eterna sem qualquer dúvida.

Agora que Ele nos aparece vivo, já nem toda a gente acredita! Confiaríamos, se o víssemos, apalpássemos como os apóstolos e alguns discípulos, mas Ele está vivo e eu vi-O hoje, nesta tarde, em que vos escrevo.

Estava naquele rapaz de que lhes falei há meses, saído da prisão. Era Ele em carne e osso.

Abandonado pela mãe, criado pela avó e agora amparado pela tia. - A minha mãe passou por mim há dias e fez que não me conhecia.

Recordamos que ele apanhou quatro anos e meio de cadeia e, ao sair, meteu-se na casa da avó já falecida e foi lá que conheci a história da sua vida.

A casa é uma habitação do séc. XVIII ou XIX. Daqueles edifícios antigos da envelhecida cidade de pescadores e conserveiros com uma escada comprida que leva ao patamar onde se abre a porta.

Estava na altura completamente destruída. Comprei-lhe o material que ele escolheu e catalogou. O carro da loja foi lá levar-lhe a encomenda e eu nunca mais lá tinha voltado.

Fui lá hoje. O homem resplandecia de júbilo ao mostrar-me a apertada cozinha já com frigorífico e fogão, bonita, bem arrumada. Aquele aspecto de paredes esburacadas pelo salitre tinha desaparecido, ele recobriu-as com placas de pladur e há-de pintá-las a seu gosto, com tinta que lhe comprarei.

A casa de banho ficou linda, linda!

Na sala limpa ele mostrava-me aqui e ali uma tábua podre no chão. Aconselhei-o a que não pusesse, como pensava, um piso de mosaicos por cima das tábuas velhas, pois a madeira poderia apodrecer e lá se ia tudo por água abaixo, mas que descobrisse bem o chão. Contasse as tábuas apodrecidas, lhes tirasse a medida, comprimento, largura e espessura que depois iríamos a uma casa especializada, compraríamos pinho bom, ele limparia as antigas e envernizaríamos tudo e a sua sala teria um aspecto nobre.

Sentados na sala já limpa, conversamos um com o outro e os dois nos animamos. Ele sobre a sua vida. - A minha mãe abandonou-me e eu ganhei duas mães: a minha avó e a minha tia. Sim, a tia acompanhou-o e deu-lhe o carinho materno de que ele vinha sedento da cadeia.

- Olha lá, então quantas vezes a polícia te apanhou sem carta?

- Sei lá, umas seis vezes.

- Ficou-te caro!...

- Oh, se ficou. E o senhor padre pode-me pagar a carta?

- Vamos a ver. Tu serás capaz de a tirar? Olha que é preciso muita força de vontade, persistência, não faças como o outro. Paguei-lhe a carta e ele reprovou no código, nunca mais me disse nada! Sei somente que voltou a ser preso, esteve na cadeia alguns sete anos! Só me tem dado desgostos. Pago-te a carta, mas tens de a tirar.

- Vou, de certeza, tirá-la.

Por agora faz biscates em Ar Condicionado, mas na construção civil, pelo que observei, daria um bom profissional.

A nossa conversa na sala, foi sobre muitos temas, mas todos eles me levaram a fugir da tentação de Tomé: se não vir o lugar dos cravos, se não meter a minha mão no lado!... Meu Senhor e Meu Deus.

Foi Ele que eu vi. Foi Ele que falou comigo, a tragédia da sua vida e agora a sua Esperança de um futuro promissor.

Tem um filho. Na adolescência e princípio do amadurecimento para uma juventude, o pai na família faz muita falta. A avó não teve mão nele, mas agora sabe-lhe bem ter estudado alguma coisa e ter reflectido muito com o sofrimento na cadeia.

- Quem me vale é a minha tia. A senhora mora por baixo no rés do chão, faz-lhe a comida, lava-lhe a roupa e dá-lhe aconchego familiar e maternal, senta-o à sua mesa. A casa dela é alugada, mas a deste jovem é sua propriedade. Arranja-a para si e para lá criar a sua própria família.

- Olhas pelo teu filho?...

- É a alegria da minha vida.

Despedimo-nos. Ele desceu as escadas à minha frente de recuo, voltado para mim para que se me desequilibrasse ele me desse a mão.

Para mim foi Páscoa! Eu vi-O.

Padre Acílio