
PATRIMÓNIO DOS POBRES
Aquela pobre angolana que encontrei perdida no sofrimento e na pobreza, revelou-me como é largo e profundo o Calvário dos pobres.
Depois de lhe ter dado mil e cem euros para pagar as rendas de Janeiro e Fevereiro e lhe ter fornecido os remédios prescritos há mais de vinte dias para alívio das dores provocadas pela doença e intervenção cirúrgica, ela telefonou-me já de noite: - O senhorio não a deixava entrar em casa, a insultava, a ameaçava e enchia de pavor por ainda não ter satisfeito o mês de Março. O homem pôs-se em frente da porta de entrada da casa e disse-lhe: - Aqui não entras enquanto não remires o mês de Março.
Mesmo sabendo do mau período que a inquilina passava, o seu coração de pedra não dava mostras de compaixão, possuído de raiva e ambição por dinheiro.
A pobre doente sentindo-se amachucada e a tremer telefonou-me, em busca de consolo e solução, a contar o que se passava.
Que lhe devia eu dizer perante uma atrocidade desta dimensão? - Oh senhora! Oh senhora! Diga-lhe que amanhã lhe paga o mês de Março, que ao menos a deixe entrar para dormir, que tenha pena e que amanhã o padre lhe dá o dinheiro!
Tudo ela chorou, tudo ela disse. De nada valeu.
Esta gente enriquece à custa de truques e, depois quanto mais tem, mais quer.
Há três anos que a desgraçada lhe paga quinhentos e cinquenta euros por mês. Nunca lhe passou um recibo e, agora, como diz o povo faz injustiça pelas suas próprias mãos.
Perante a fraqueza, a ignorância e a debilidade da sua inquilina usa a força do seu corpo! E não a deixou entrar.
Valeu-lhe outra pobre que lhe deu de jantar: - Eu estava cheiinha de fome padre, e aquela amiga não só me deu cama, mas também de comer.
No dia seguinte passei-lhe o cheque, mas advertia-a: - Diga lá ao seu senhorio que ele não pode proceder desta forma consigo, que ele lhe deve passar recibo todos os meses, senão que se vai queixar à autoridade. Ele não tem legitimidade nem poder, para se portar desta maneira consigo.
A situação actual da falta de casas, leva a todos os abusos! As rendas sobem e os senhores gananciosos acham sempre que podem ganhar mais. Não há fiscalização e a ganância vence.
A pobre falou de uma neta que vive com ela. Eu quis saber da história da descendente: - É filha do meu filho que anda para aí na bebedeira, se juntou com uma drogada e eu vi-me na obrigação de acolher a menina porque aquilo não era ambiente para a criança. Precisa de uns óculos, vê muito mal. Tem os olhos tortos e é muito envergonhada.
Não admira que a mocinha seja triste e complexada na escola, com treze anos e estrábica, é natural que se sinta inferior às outras.
Eu não imaginava e penso que o leitor está como eu! Com esta idade e no sétimo ano de escola, a aluna não tem o defeito corrigido, nem óculos que a ajudem a ver melhor e a reparar a sua visão. Nem se acredita! Se faltasse à escola, se não tivesse ao longos dos anos vários professores e professoras, ninguém teria notado o defeito tão grave? Ela que está no sétimo ano!
Tanta gente com alguma cultura e conhecimento de meios, não tenha feito nada para ajudar a criança? Passam indiferentes de ano para ano, umas para as outras! Uma deficiência tão evidente!
Da outra vez mandei-a à Segurança Social, mas ela não está legalizada nem com documentos apesar de residir e trabalhar em Portugal há vinte anos. Dei-lhe agora, dinheiro para tratar de toda a documentação necessária.
A indiferença é neste caso e noutros, uma chaga corrente, somos capazes de chamar a atenção, os colegas a chamarem-lhe de zarolha e outros nomes injuriosos. Contudo não nos atrevemos a levantar uma palha para acabar com o sofrimento alheio!
Oh gente do meu tempo! Vencei a indiferença. O mundo só é melhor se cada um fizer o que pode. Estes dois casos da avó e da neta dizem-nos com clareza o que é o submundo dos pobres.
Padre Acílio