PATRIMÓNIO DOS POBRES

Cada dia me parece mais clara a recomendação do Papa Francisco de irmos às periferias sociais, eu diria ao submundo, um universo escondido que a sociedade organizada não conhece.

Um mundo social que vive debaixo de outro 'mundo organizado' o qual poucos conhecem, onde o sofrimento é atroz.

Não foi nas universidades frequentadas com brilhantismo nem nas conferências que fez ou ouviu ao longo da sua carreira sacerdotal, mas sim nos bairros e favelas, muitas vezes visitadas.

Foi lá que o Evangelho soou a novidade e lhe deu o discernimento da sabedoria. Foi aí que Ele encontrou as amontoadas injustiças sociais; aonde Ele leu com justeza a parábola do Bom Samaritano que não se cansa de repetir e onde se viu envolvido nas vidas infelizes que tantos outros não conhecem.

Os pobres e caídos são os melhores pregadores do Evangelho de Jesus Cristo e a forma mais correcta de sairmos de um farisaísmo e um levitísmo que nos encobrem tantas formas de injustiça e nos faz passar ao lado.

O Padre Américo na sua expressão original gritava também aos clérigos: Ai se tu conhecesses como é belo o Evangelho dos pobres!...

Uma abandonada com os seus filhos, pelo telefone desabafou que tinha a canalização da casa toda entupida e visto na internet a oferta de canalizadores que fariam o serviço por 120€.

Como não tinha nada para pagar e estava a sofrer muito com as suas crianças, uma casa alagada com o próprio lixo, telefonou-me a pedir se lhe pagava o trabalho. Era a máquina de lavar roupa, o esgoto da cozinha e da casa de banho.

Veio buscar o dinheiro. Sentei-a à minha mesa enquanto almoçava, para lhe recomendar que não pagasse, sem primeiro verificar bem, se tudo funcionava. Ela controlou e deu-lhe a quantia estipulada. Daí a pouco descobre que na cozinha haviam coisas entupidas e pelo telefone chamou os homens que ao voltarem exigiram mais 175€ para fazerem o resto.

Desorientada, telefonou-me para ser esclarecida e como fazer. - Então o combinado não foi apenas aquela quantia de 120€?! Olha que eles são capazes de terem feito de propósito para te extorquir mais dinheiro. Manda-los acabar o serviço e depois dizes que o trabalho está pago.

Ela estava em casa sozinha com as crianças. Os dois homens ameaçaram-na que não sairiam enquanto não lhes desse os 175€ .

Cheia de medo, pediu emprestada, a uma pessoa amiga, a quantia exigida para se livrar de tão pesado assombramento.

- Sozinha em casa, de noite, perante dois homens sem escrúpulos!... Que fazer? - Chamar a polícia, não podia, apenas lhe restava uma saída: dar-lhes os 175€. Com gente que utiliza o terror para fazer o que lhe apetece. Como poderia reagir uma pobre mulher? E quem não cai em armadilhas feitas com um cinismo tão inteligente!

Tenho andado também envolvido com outra pobre que me apareceu grávida, no fim do ano, a solicitar ajuda para pagar a renda da casa. Dei-lhe dois ou três meses.

Tenho muito respeito por uma pessoa naquele estado, mas disse-lhe que não contasse muito comigo porque este apoio de agora não se repetiria.

As rendas das casas são um afogadilho terrível para uma pessoa sozinha a viver do ordenado mínimo ou do subsídio materno.

Agora tornou a surgir-me com o menino nos braços para que lhe acudisse. Desfolhando uma série de facturas e chorando que lhe iriam cortar a luz se não pagasse até data muito próxima.

Neguei, neguei! Respondi-lhe que não tinha dinheiro, já a tinha ajudado com promessa dela nunca mais me aparecer.

Quis ir à missa que eu ia celebrar. Com a criança agarrada ao seu peito, sentou-se e esteve de pé conforme o cerimonial.

A gente olha. O coração bate e nestas alturas ele é mais forte que a cabeça.

Cá no fundo da Capela, sozinhos perguntei-lhe pelo pai da criança. - Fugiu para a França.

A forma franca e atrevida com que lhe falei sobre um homem destes com o qual ela gerou um filho, fê-la abrir a sua intimidade. - Olhe que eu fui criada num colégio em Lisboa. Os meus pais eram os dois drogados. A minha mãe enviuvou e arranjou outro homem que abusou de mim toda a vida até morrer.

Que dizer!... Como agir?! Eu estava vencido. - Vem cá na segunda feira, hoje não tenho comigo dinheiro nem o livro de cheques. Mas vai saber bem qual a entidade a quem devo endossar o cheque.

Ela veio e foi outra vez à missa. Mais dores! Mais sofrimento! Mais escuridão... O amanhã dela e do menino!...

Passei-lhe o cheque à individualidade apresentada.

- Oh! padre, pague-me ao menos dois meses de renda da casa. Olhe que devo ainda o Janeiro. O meu menino sofre de um rim, tem estado no hospital, não pode tomar alimento se não o que se vende na farmácia. Cada frasco custa 25€. Dei-lhe o que me pedia.

É o submundo escondido onde Deus sofre e se revela!

Padre Acílio