PATRIMÓNIO DOS POBRES

Não sei quem lhe deu o meu contacto. Tenho muito cuidado com o número do telemóvel, pois pelo telefone, a gente nunca tem o sentido perfeito das coisas. É melhor uma conversa cara a cara. O homem pediu-me, por tudo, que o atendesse.

Combinámos a hora, o local e encontramo-nos. Não ele sozinho, mas acompanhado da mulher e dois filhos. O mais velho com sete anos e o mais novo com pouco mais de três. A mulher bem-apresentada, embora modesta e os dois meninos com cara de quem come muito pão, anémicos e bochechudos. O homem com cara de presidiário trazia o rosto marcado pelo sofrimento, idade aproximada dos trinta anos, cara esquelética, olhos encovados, rosto macerado.

Apresentou-me a mulher e os filhos contando-me a sua situação.

Saíra da cadeia por ser apanhado a conduzir sem carta. Conduzia a carrinha do patrão, precisava de tirar a carta mas não tinha dinheiro. Os meninos e a mãe olhavam para o homem com ar de quem se sente dorido e a pedir.

Após uma advertência amiga de conduzir sem as devidas habilitações, é muito perigoso para toda a gente, para o que conduz e os que se cruzam com ele, e que um castigo destes é sempre severo também para meter medo a outros e impedir que as pessoas se atrevam a tal.

Doeu-me a família e perguntei-lhe qual a escola onde pensava tirar a carta. Apresentou-me o reclame da mesma, com preços a pagar em prestações e logo de entrada. Fiquei com o último e entreguei um cheque com a quantia certa e endossado à escola de condução.

Vivem numa casa de renda económica e foi o que lhes valeu, pois, o rapazinho mais novo já nasceu com o pai preso.

A mãe trazia uma factura da água e apresentou-ma para eu pagar, mas neguei: Não, não! Pago só a carta.

Não é a primeira vez que faço isto. Não senhor, já o fiz muitas vezes. A carta é uma mais valia para arranjar trabalho, sentir-se valorizado como os outros e diante deles.

Nos últimos decénios, na Casa do Gaiato todos os rapazes que quisessem, tinham carta oferecida pela Casa. Era só querer e capacitar-se.

O mesmo pensava eu depois com os meus botões: Então o Estado gasta tanto dinheiro com um prevaricador e nega-se a resgatá-lo?

Que faz para o reabilitar?

Se um homem é condenado a uma pena tão severa por conduzir sem carta que faz por ele o Estado além do castigo?

Será esta a função da justiça? O seu campo é assim reduzido?

Se um rapaz da Casa do Gaiato tem a oportunidade de tirar a carta e a maior parte dos jovens, rapazes e raparigas, hoje tiram a carta de condução, porque não haverá possibilidade de um homem preso , pobre, pai de filhos frequentar uma escola de condução? Pelo menos no último ano da sua pena!

Só porque o Estado não se dispõe a pagar uma escola? É precisa a caridade cristã?

Falou-se tanto da luta contra a pobreza e os homens que conduzem a Nação não perdem a oportunidade de empregar o termo luta, quando o que se passa, não é uma luta, mas, um adormecimento, uma indiferença repugnante, para com tanta gente que não tem meios, para se erguer e saltar para um nível de dignidade humana.

Será ainda que os serviços das prisões não tem Assistentes Sociais, pelo menos um, em cada cadeia, o qual faça um relatório apresentado ao juiz, encarregado de mexer na penas, sobre a situação familiar, económica de cada homem detido? Irão às suas casas? Verão as condições de vida de cada homem sujeito ao regime prisional e apresentarão ao juiz? Terá este alguma relação com a Segurança Social por forma a encontrar ajuda, pelo menos para ressurgimento material e psicológico do condenado?

Sei que alguns presos na cadeia de Setúbal, fazem trabalhos agrícolas, mas isso não basta para a reconstrução equilibrada da personalidade de tantos que ficam cada vez mais ressabiados.

Noutras cadeias, pelo menos, noutros tempos havia a preocupação de elevar o nível cultural e profissional dos detidos. Sei também que em certos países o cuidado com a recuperação dos prisioneiros é mais forte e mais cuidado que o próprio castigo. Claro que depende dos crimes, mas pelo menos, destes a que me refiro é de certeza.

Tem mais valor para a sociedade, para as famílias e para os indivíduos, dar-lhes a mão, do que simplesmente cumprir as sentenças.

Padre Acílio