PATRIMÓNIO DOS POBRES

Este tempo natalício convida-nos a falar dos pobres, mais ainda das suas crianças.

A mãe desta menina a que me vou referir é uma mulher que ficou sem mãe aos dois anos e criada por uma tia. Entretanto, fez o 12º ano, mas viveu sempre com uma ânsia forte de se libertar do poder paternal exercido pela sua familiar.

Encontrou um rapaz estrangeiro, que no seu sonho de independência, lhe abriu o caminho. Tiveram um filho e, dois anos depois, ela tornou a engravidar. O progenitor deixou-a e fugiu para França, no desejo de se libertar do fardo dos dois filhos e da mulher.

Desamparada, alugou um quarto por 190€ que o Património pagou várias vezes; fez queixa às autoridades que, desta vez, foram eficazes e apanharam-no naquela nação, sem qualquer documento que o autorizasse a viver no país que não era o seu.

A família dele revoltou-se contra a pobre rapariga e ele, ao ser obrigado a registar a filha, nem sequer a quis ver.

Passado algum tempo, descobriu onde morava a mãe dos seus filhos, foi lá a casa, deu-lhe uma tareia, que ela ficou com o corpo cheio de nódoas negras, fazendo o mesmo à senhoria do quarto, que veio em seu socorro.

Entretanto, a senhoria precisou do quarto porque a sua filha ia casar e a pobre mãe teve de arranjar uma mini casa, que só tem um quarto, uma casita de banho e uma cozinhita para onde foi viver com os seus filhinhos.

A antiga senhoria é uma boa mulher, amiga dela, sofre com ela e ajuda-a cuidando dos filhos, que agora estão doentes, e não podem frequentar o infantário. Ela perdeu quinze dias de trabalho por causa da doença dos filhos.

Cuidadosa como é e muito jeitozinha, ganhou, após o primeiro mês, o lugar de efectiva no restaurante onde serve.

Telefonou-me a pedir que lhe pagasse a renda do casinhoto onde se acolhera com os filhos: 400€.

Como mudou de casa e eu não conhecia o sítio, combinámos encontrar junto de um supermercado, no alto da Bela Vista.

Os telemóveis dão-nos alguma facilidade e eu fui com a D. Conceição ao encontro da abandonada e da sua filha.

Era noite! Uma escuridão espessa fazia ressaltar as luzes da cidade à beira-rio e uma chuva miudinha enregelava o ar.

Parámos. Pus os pisca-piscas a acender e a apagar e, no meio do negrume, por um carreiro da relva, aparece a mãe com a sua menina ao colo a choramingar.

Mandei-a entrar para o carro e perguntei-lhe, com naturalidade, o que teria a menina para vir tão chorosa.

- É fome, ela está com fome.

- Não tens mama?

- Tenho sim.

- Então dá-lhe a mama, não te acanhes.

A menina de cinco meses é muito linda. É um encanto de criança.

Enquanto a mãe, com ternura e muito carinho, amamentava a sua filha, eu contemplava as luzes da barra do Sado, cortada ao meio por um grande navio cargueiro iluminado em direcção ao porto para atracar. O espelho das luzes da margem-rio dava às águas, no meio da neblina, uma beleza quase transcendente que me elevava ao Criador e me distraía do momento em que me enredava.

- Então fulana, a menina já mamou?

- Já, e já dorme.

Ali mesmo no carro lhe passei o cheque, o pus nas suas mãos com estas palavras: - Se eu fosse pároco e estivéssemos livres do covid, quem iria fazer de menino Jesus na minha igreja seria a tua filha. Ela é uma imagem viva e encarnada actualmente do Deus menino no Presépio. Todos os cristãos a iriam beijar e sentiriam como nós a doçura divina já a sofrer o desprezo dos homens.

Nota: Esta história real entrelaça a reflexão que prometi fazer com o escrito do Papa Francisco para o Dia Mundial dos Pobres.

Padre Acílio