PATRIMÓNIO DOS POBRES

Recebo algumas cartas que me vão alentando e, nelas, sinto o dedo de Deus que me anima. O amor de Deus, que invisivelmente a todos abraça, e se dói do milhão e duzentos mil pobres que entre os portugueses sofrem escravatura da pobreza, segundo um estudo publicado num jornal de Lisboa, que ninguém desmentiu e toca os corações abertos esta ferida social que nunca mais se sara. Entre as demonstrações deste amor Divino, trago-vos hoje a da Elisa, que me escreve assim:

«Há muito que ando para fazer isto, mas como uma coisa e outra da vida, ia demorando!...

De repente, num texto da Sagrada Escritura que leio um pouco todos os dias, vejo isto: 'não tardes a esmola do pobre'.

Isto é comigo, pensei. E apressei-me logo a fazê-lo. É uma gota no oceano das suas aflições mas nós sabemos da multiplicação dos pães.

Os meus votos de saúde para o senhor. E tudo do melhor com a Graça de Deus.»

A Elisa é do Norte. Em sua casa lê O Gaiato e faz suas as minhas aflições, por isso me envia 500€, cuja medida é feita pelo Invisível, que sabe das suas posses. Ela vai lendo o Património dos Pobres e sabe quanto é penoso não ter casa, não ter rendimentos para uma renda tão pesada e como é o penar de tanta gente e a sua escravidão: trabalhar para comer o mais barato, vestir, cuidar da precária saúde, educar os filhos, sofrer os reveses que toda a vida traz e pagar uma pesadíssima renda de casa.

Que Deus continue a abençoar-te, Elisa, com essas inspirações. Continua a olhar para essa luz brilhante que é a Sagrada Escritura, tu e todos os amigos que comigo comungam o sofrimento dos pobres a quem saúdo e abençoo, em nome do Senhor que vive nestes pacientes.

Olha, ontem, antes da missa, que celebro vespertinamente na igreja do Carmo todos os sábados, fui visitar uma aflita que, com a pandemia, perdeu o trabalho e o marido também.

Talvez, para esconder a sua escravidão, evitava que eu fosse ver onde vivia e desejava que desse ao menos um mês de renda, mas eu não dou sem saber bem o que faço e sempre que posso, vou ver, ou peço aos párocos informações, o que raramente recebo.

Combinámos, ela esperar-me em frente ao hospital de São Bernardo, pois a sua morada era ali perto, na Rua Jacob de Azambuja.

Passei, dei volta à larga e magnífica rotunda e não via ninguém frente à entrada do hospital.

Já desiludido, pensei em dar outra volta para verificar se alguém me aguardava e toca o telemóvel:

- Sr. Padre, vem naquele carro vermelho?

- Venho sim.

- Eu já aqui estou, atrás de si - disse-me ela.

Quis entrar para o banco de trás mas, depois, perguntou se podia avançar para o banco da frente, a meu lado.

- Sim, senhora - repliquei.

Olhei-a e reparei logo que era uma moça nova, com uma gravidez adiantada e perguntei-lhe pelo companheiro. Que estava a trabalhar.

- Então, os dois não conseguem pagar a renda?

- Não, ele ganha pouco e é conforme, não é certo. Vai ganhando para comermos, pois também foi despedido por causa da pandemia. Está à espera de ser chamado pela empresa.

Estacionado o veículo, ia à minha frente e entrou por uma espécie de quintal com vários pardieiros. Um, era a sua casa. À direita da entrada, uma reduzida casa de banho. À frente, um quarto sem camas. À esquerda uma pequena cozinha, o chão de ladrilho e cobertura de telha sanduíche e lusalite.

- Então, você paga por isto 400€/mês?

- Foi o mais barato que arranjámos.

- Fez contrato de arrendamento?

- Não. O senhorio não faz contratos e deixou-nos entrar também sem caução.

- Ele passa-vos recibo?

- Não.

- Vocês, sem recibo e sem contrato, não podem provar o direito à casa. Como se chama o senhorio?

- Belmiro.

- Só Belmiro?

- Só conhecemos este nome.

- Mas eu só passo o cheque endossado ao senhorio!

- Ele não quer cheques.

- Mas eu não tenho dinheiro.

- Passe-me o cheque a mim, tem aqui o meu cartão de cidadão.

- Telefone lá ao seu senhorio.

Ela falou com o homem que se manteve irredutível:

- Não aceito cheques.

Fui-lhe explicando porque é que não faz contrato, não aceita cheques, nem passa recibo:

- É que aquilo é tudo ilegal e amanhã ninguém te defende.

Começou a chorar. Que para a semana ia dar à luz e já tem um menino, o qual estava connosco. Não sabia o que fazer, que não há casas em parte nenhuma e que, se saísse dali, só para a rua.

O menino Francisquinho agarrou-se à mãe, como que a consolá-la e eu fiquei sem saída, ao sentir a escravidão dos pobres. É que não há casas para alugar.

Rezei, chorei também, fechei os olhos, passei-lhe o cheque de 400€, saboreando a opressão dos pobres.

Será que ninguém fiscaliza estas situações? Sim, não compete ao Estado defender os pobres? Andamos todos a fazer de conta, com tanta pobreza e tão grande exploração.

Tanta discussão com o orçamento e todos a puxar a brasa à sua sardinha, ignorando, indiferentes, esta podridão de que os pobres são vítimas!

Façam como a Elisa, leiam a Sagrada Escritura para evitar esta terrível escuridão.

Será meu dever denunciar às finanças? Sim. Para onde vão os pobres, se não há casas? Se eu denuncio, quem acolhe depois esta gente? É por isso que esta e muitas choram.

Padre Acílio