PATRIMÓNIO DOS POBRES
Apesar de ter comprado a casa para a Ana, pelo preço de cinquenta mil euros, mais quanto ela devia às finanças, o que passou dos mil e trezentos euros, mais o preço da escritura, mais o que pagou ao Estado para o registo da casa - o Estado não perdoa. Tanto paga o rico como o desgraçado, como se não fosse legal possuir uma casa. Como se uma família não tivesse direito a uma morada. Mais ainda, uma família monoparental com três filhos - o Património dos Pobres não parou.
Bati à porta de gente cristã, pedi-lhes ajuda para a aquisição da quantia necessária e os irmãos responderam generosamente, de modo a que fiquei ainda em condições de continuar a fazer o BEM.
A mãe dos cinco filhos abandonada pelo marido há dezassete anos, recebeu de seus pais, pescadores, uma casa, cuja cozinha ficou quase destruída pelo desertor e assim continuou até à minha visita. Ela lavou a sua loicinha numa bacia de plástico que colocava na banheira da casa de banho ao longo destes anos.
Apareceu-me a pedir pagamento do IMI e uma ajuda porque estava a passar fome. O filho mais velho está na Marinha e os outros, na escola.
O estado da cozinha era realmente uma desgraça: azulejos partidos, chão esburacado, tubagem da água e dos esgotos ausente.
- É capaz de arranjar alguém que lhe faça isto e diga quanto custa?
- Vou ver.
Passados uns oito dias, telefona-me a dizer que havia conseguido quem fizesse o serviço por quatrocentos euros. Achei que não era muito caro e comprometi-me. Ao fim de uns dias de trabalho, o pedreiro pediu dinheiro e a senhora chamou-me. Fui lá e, como estava com pressa, não fui ver e preenchi-lhe um cheque de 250€.
Ora, o homem nunca mais apareceu. Vou ver e a pobre estava desolada:
- Aquele maldito enganou-o e aldrabou-me a mim.
- Sabe onde ele mora?
- Não, não sei.
Ao fim desta exclamação, ela olha-me com um ar furioso, olhos negros, faiscantes, cara enrugada pela fome, pelo trabalho e pelo desgosto da própria vida.
- Aquele maldito, senhor padre, se o apanho, ele vai ouvir-me!
O pedreiro era negro, também pobre, e atreveu-se a explorar a desgraçada. É o mal do mundo. Ataca toda a gente. Ricos e pobres. E chama-se GANÂNCIA.
Aquela mulher, porém, não desanimou. Sabendo que poderia pôr a sua cozinha com dignidade, arranjou outro pedreiro que lhe completou o trabalho por mais 150€.
Habituada a vencer as dificuldades, saboreando o apoio de Deus que lhe era oferecido por mim, não se deixou vencer.
Este último alvitrou-lhe que a cozinha ficaria bem se levasse uma cobertura de azulejos por cima dos velhos e do reboco que ele acabara.
A heroína pôs-se de volta de mim:
- Olhe, senhor, são só mais quatrocentos euros e eu fico com a minha cozinha um amor!
Alta, magrinha, de cabelo comprido, mal-tratado, conseguiu vencer-me. Mais ainda, levou-me a uma loja, hipermercado de materiais de construção, e encomendou um móvel com gavetas e lava-loiça e eu paguei mais seiscentos euros.
Este era para ter vindo no dia 9 de Junho, mas, por dificuldades do construtor, só estará pronto dia 17 deste mês.
Depois, prometi-lhe que ia estrear a cozinha, comer com a sua família uma caldeirada na sua casa: sentarmo-nos todos à mesa e elevarmos também o Pão do Céu - a Palavra de Deus. Convidá-las para se aproximarem do Senhor, que veio ao seu encontro, ajudado pela tenacidade e confiança da mãe.
Vai ser uma festa com Deus à mesa.
* * *
Além das rendas da casa que surgem quase diariamente como uma moição que me tolhe, aparecem outras carências a que não posso voltar a cara.
É o caso de outra mulher, também abandonada, embora com dois filhos já criados, com a dívida da luz no valor de 240€.
Fartei-me de lhe dizer que não podia, que os pobres vêm de todos os lados bater-me à porta, mas ela venceu-me:
- Olhe que sou diabética, tenho de ter insulina no frigorífico em casa, e se me cortam a luz, onde a vou guardar?
Agarrou-se a mim a chorar e eu tive de ceder!
Tinha levantado no banco 2.000€ e aquele dinheiro era já o resto.
Ela ansiava por encontrar, na sua linguagem, um anjo de Deus que lhe valesse. E encontrou.
Padre Acílio