PATRIMÓNIO DOS POBRES

Entre as muitas situações dolorosas que me marcaram a quinzena, devo salientar a de uma pobre mulher que me veio bater à porta.

Foi um dia sem sol nem chuva. O céu encontrava-se nublado mas com as torneiras fechadas.

Levantei-me cedo para estar antes das oito horas à porta do centro de saúde, a fim de pedir uma consulta para exames marcados por um médico particular.

Cheguei às oito, mas a minha médica de família estava ausente todo o mês de Abril e só em Maio seria possível designar o dia da consulta, de forma que voltei para casa, embora tivesse fisioterapia na cidade, às dez e quinze, a fim de tomar algum alimento com os remédios que costumo engolir, misturados com um iogurte e alguma fruta.

Na volta da cidade, já perto de casa, cruzei-me com uma mulher de cabelos compridos, a adornar-lhe o pescoço e as costas e disse comigo: "É pobre que me vai pedir."

Regressei tarde, já o almoço dos rapazes ia a meio. Sentei-me a rezar e pus-me a comer a gulosa sopa de caldo verde.

Entretanto, o Milton vem dizer-me que estava ali fora uma senhora que desejava falar-me.

- Está bem. Ela que diga o que quer.

O Milton vai e vem com outro recado:

- Ela quer falar consigo.

- Mas pergunta-lhe qual é o assunto. Falar comigo sobre quê?

O Milton, cheio de paciência, ou já tocado pelo aspecto da mulher, volta de novo:

- Ela quer falar-lhe da vida dela e dos filhos.

Sentia-me cansado e, com o almoço na barriga, dificilmente me levantava.

- Diz à senhora que venha cá.

Sentado à mesa, encarei a pobre e, pelo seu olhar, vi logo que trazia tragédia no coração.

- Sente-se aí.

Ela puxou de uma cadeira, que os rapazes já tinham saído do refeitório, e sentou-se à minha frente na mesa redonda. Pôs as mãos em cima da mesa mas os olhos prenderam-se ao açafate de verga com várias fatias de pão sobrado do almoço, junto de uma tigela grande ainda com peças de fruta.

Tinha cinco filhos. Devia cinco meses de renda de casa. O marido estava preso por lhe haver dado uma tareia tal que lhe partiu um pé. Mora em Vila Maria, uma zona junto ao rio Sado. Vivia de apanhar minhocas para a pesca e agora, doente, o médico proibira-a de andar nessa faina, pois lhe agravava a saúde. Não sabia, entretanto, como sobreviver.

Instintivamente, os olhos cravaram-se no pão e na fruta.

- Está com fome? Veja lá!

Ela agarrou-se imediatamente ao pão, desabafando:

- Ainda hoje não comi nada. Saí de casa desnorteada, sem pensar para onde iria.

A incapacidade de remediar as dificuldades da vida pobre é um peso tremendo. Não me admira o desnorte desta desgraçada.

Frente a frente, descobre-se melhor o avanço da pobreza. A boca tinha um único dente na parte de cima e dois na de baixo. Daí a dificuldade evidente em cortar com a boca as fatias do pão e mastigá-lo com as gengivas, engolindo-o apenas salivado.

- Eu estou a implantar três dentes que irão segurar o resto de uma placa interior. Tudo me é oferecido e ainda, às vezes, digo que sou pobre.

Eu sou mas é rico! Tudo me é dado! Como devemos repartir os nossos bens com este espectro terrível da pobreza que esmaga tanta gente simples e pura.

Pedi à senhora da casa que lhe arranjasse uma malga de caldo verde, onde ela molhou as fatias, assimilando-as assim com mais facilidade.

Verdadeiramente, não há como sentar um pobre à nossa mesa. As sensações transformam-se, intuímos melhor o sofrimento dos outros. A sua imagem transforma-se e aparece-nos uma figura sobrenatural e divina. A mesa é o melhor lugar para pressentirmos a amargura dos irmãos. Bem diz o Papa Francisco: "E se possível, sentá-los à nossa mesa."

Contemplei-a a comer, mãos encarquilhadas, testa queimada pelo sol e pelo surro, cabeleira grande, escura mas não negra, desalinhada e sem tratamento. Olhos encovados pela fome e tristeza, baços de infelicidade e carências.

A senhora fez-lhe um avio e eu dei-lhe setecentos euros em cheque, endossado à senhoria, mas a minha alma ficou a escaldar com este encontro.

Padre Acílio