PATRIMÓNIO DOS POBRES

A Ana, mãe solteira, trabalha num restaurante 12h por dia.

De quem? Poderás perguntar-me. Não sei. O que ela me disse foi que ele abalou e já tem mais dois filhos de outra mulher.

Meu Deus! Quanta gente se vai deliciar com a boa comida daquele estabelecimento, famoso pelos variadíssimos acepipes, não se apercebe do que fica por trás de cada pratinho.

Com o seu trabalho, vai criando os filhos, amparando-se afectivamente neles.

Após nove anos de habitação na sua casa, foi despejada com as crianças. Porquê? Porque o senhorio fazia-lhe a renda mais barata se não passasse recibo. Era uma renda de 250€.

A pobre mãe abandonada caiu na fraude e pagava sem documento.

Quem não faria o mesmo, vivendo em condições idênticas? O pior é que o senhorio vendeu a casa a um grande empreendimento imobiliário, ela não tinha recibos. Veio o Estado, através do Tribunal e, sem mais quê nem para quê, pô-la na rua com as crianças, dando-lhe apenas um dia para tirar o que era seu.

Ela ainda quis apelar mas, teve receio que o Estado, através da protecção de crianças, lhe tirasse os filhos e preferiu o desespero.

Bateu a todas as portas: Câmara, Juntas de Freguesia, Paróquia, Bispado. Naquela eminência de ir para a rua ninguém lhe valeu.

Perdida na vida, telefonou então para a Casa do Gaiato em choro: se eu a recebia. Naturalmente que sim. Aqui não se faz marcação para entrevistas. Que arranjasse a casa e depois falaríamos.

Pelo telemóvel, a desgraçada foi-me dando conta dos passos que dava. Que arranjou uma casa onde não lhe exigiam fiador mas, dois meses de caução e um mês de renda, a 550€.

Veio com a filha, uma menina dos seus sete ou oito anos que ela beijava frequentemente na testa, regando-a com as lágrimas que caíam em bica por cima dos encaracolados e lindíssimos cabelos.

Passei-lhe um cheque no valor de 550€. Ela bem me implorava, soluçando, que lhe desse ao menos dois meses.

- Ó mulher, se eu te tivesse só a ti, dava-tos, mas olha que os pobres são tantos que eu tenho de repartir.

No fim do outro dia, terminava eu a sessão de fisioterapia, ela telefona-me de novo. Que vendeu tudo o que tinha e só conseguiu outros 550€. Faltava-lhe um mês. Não tinha onde dormir com os filhos e a senhoria não lhe adiantava a chave sem outro mês.

- Onde estás? - Perguntei-lhe.

- Estou aqui ao pé dos correios centrais.

- Então espera-me aí que eu passo e levo-te comigo.

As aflições dela passaram para mim e em Casa passei-lhe outro cheque de igual valor endossado à senhoria. Mais, pedi ao Padre Fernando que me emprestasse a camioneta e dois rapazes para lhe levarmos duas camas, colchões, roupa e um bom avio.

- Olhe que hoje para comermos umas bolachinhas, vendi o meu par de botas por 5€. Não tínhamos nada para matar a fome.

Noite fechada, lá fui com os rapazes e a camioneta carregada. A casa era um terceiro andar. O Santiago mais o Igor carregaram tudo escadas acima.

Como me alegrou a alma, contemplando com os meus olhos, a generosidade e a alegria com que os Gaiatos se esforçavam para proporcionar um abrigo àquelas pobres crianças.

"Pobre dos Pobres, são pobrezinhos", diz o poeta, "almas sem lares, aves sem ninhos".

Se fosse um rico, a in-justiça do tribunal não era tão célere. Um advogado levantar-se-ia com ela e as crianças, tão novas, testemunhas de que ela pagou prontamente a sua renda, etc, etc; muitos argumentos que os causídicos são capazes de ver. Pelo menos não era despejada assim de pé para a mão, apesar do choro pungente da mãe.

Eu não posso pôr no Jornal quantas tragédias me passaram neste intervalo de tempo, mas acho que foram oito.

Um, desempregado, ficou sem a mulher porque ela fugiu com um outro homem e deixou-lhe com dois filhos. Ainda por cima, levou-lhe tudo quanto pôde, até o computador que a escola tinha dado ao mais velho. O senhorio exigia a renda com água incluída: 463€.

Outro, da Quinta do Anjo, desempregado, com multas das Finanças, um filho muito doente e a renda da casa: 632€.

Outra, na rua, porque lhe ardeu a casa, queria dois meses e só lhe dei um: 400€.

E mais e mais...

A pobreza extrema alastra e a miséria avança.

Todas estas tragédias seriam menos graves, abundantes e dolorosas se os nossos políticos, em vez de aumentarem os seus ordenados e proventos, cuidassem como mentirosamente apregoam, dos mais pobres, dos que não têm casa para viver. Estão cegos. Nem a pandemia, nem a abstenção nas últimas eleições lhes abre os olhos e o coração.

A Igreja emudeceu, como se a verdade e a justiça não fossem da sua área. É mais fácil e mais cómodo elogiar do que criticar e exigir.

Padre Acílio