PATRIMÓNIO DOS POBRES
Voltou de novo aquela pobre mulher que vivia num quarto com a filha, sozinha, encapuçada com a sua máscara e de olhos no chão à espera da minha demorada passagem e da minha intervenção: - O que a traz por cá hoje?
É um dever imposto pela caridade cristã - eu vinha de celebrar a Missa - ajudar a vencer as barreiras que os pobres, na sua tacanhez não se atrevem a superar.
Agora não é o quarto, mas, sim, a casa. Se a conseguir, a senhora doutora devolve-lhe a filha. - A senhoria vai deixar a casa, pois está velhota, e arrenda-ma por trezentos euros/mês, mas exige uma caução do mesmo valor. Venho pedir a sua ajuda, para ver se adquiro a companhia da minha filha, que me levaram para Alcácer. Veja, senhor padre, a minha dor e ajude-me!...
Não lhe dei os 600 euros que ela me pedia, mas fiquei por metade afirmando que não podia mais. Arranjamos-lhe um avio e eu próprio reparti com ela uma boleia que a levou perto da sua casa. Após deixar a desgraçada os meus sentimentos começaram a remoer e a perguntar a mim próprio: então o Estado tem poder para tirar à sua mãe uma filha de 16 anos e não tem poder para lhe pagar a renda e a caução de uma casinha pobre? Será que o Estado é justo?
No artigo 65º da Constituição da República Portuguesa diz-se:
1º Que todos têm direito para si e sua família a uma habitação de dimensão adequada em condições de higiene e conforto que preserve a intimidade e privacidade familiar.
2º Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado:
a - programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam uma rede adequada de transportes e de equipamento social.
b - promover em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais a construção de habitações económicas e sociais.
c - estimular a construção privada com subordinação ao interesse geral e o acesso a habitação própria ou arrendada.
d - incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar cooperativas de habitação e autoconstrução.
3º O Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.
Então o Estado não cumpre este dever primário e essencial para com os pobres e deixa a iniciativa privada viver de uma concorrência nunca vista, com rendas de casa que ultrapassam muito a capacidade financeira das famílias e atira-se aos pobres indefesos retirando-lhes os filhos atropelando as regras do direito natural à maneira dos ditadores?
O Estado deve ser coerente e justo. Se não assegura o direito à habitação, perde a base de todas as suas exigências.
Há dias o Chefe do Estado reconhecendo a evidente situação de muitas famílias sem casa nem capacidade para alugar, vendo-se obrigadas a juntarem-se em minúsculas habitações, atribuiu o desenvolvimento do Covid-19 a esta evidente situação na zona da grande Lisboa. Ainda bem que o fez, pois só vem dar razão aos meus apelos.
Todos os governantes juram cumprir e fazer cumprir a Constituição, depois... sentam-se no poder cada um governa ao seu modo ou seu jeito e a Constituição acaba por ser uma fantochada perante a qual se curvam os hipócritas. Há dinheiro para tudo, até para ser impunemente roubado e não há verba para fazer respeitar os juramentos tão importantes para o povo português.
Padre Acílio