PATRIMÓNIO DOS POBRES
A pobreza aumenta e embora o acréscimo das pensões seja algum, não cobre o aumento do custo de vida. A extrema pobreza é cada vez mais abundante.
Tanto esta, como aquela, apertam comigo.
A primeira, pede ajuda; a segunda, sem solução, quase me obriga a resolver as suas gritantes dificuldades. Nem uma, nem outra, tem qualquer defesa desinteressada, seja de quem for.
Mulher — com uma filha a sofrer de arteriosclerose e o marido com o vício do jogo que deu cabo de tudo e a deixou sem nada, a ela e à filha, as quais já possuíram uma casa e uma vida razoável, vive, agora, com a mesma filha num casinhoto de janelas e portas pobres, onde o frio abunda -, vem com uma multa do Tribunal de Faro, no valor 220 euros, acusada de ter maltratado um cão.
Como sei que, para certas pessoas, um animal vale mais que uma pobre mulher, pedi ao Hélio que, com o cartão da Casa, lhe pagasse a coima.
Comprometi-me apenas com o colete ortopédico que o médico receitasse.
As mães têm o seu instinto mais apurado relativamente aos filhos doentes, e ao ver a filha com o pescoço muito inclinado para frente, duvidou se esta tendência crescente seria provocada só pela referida doença. Pediu dinheiro emprestado, foi a um médico particular em Lisboa, o qual a informou que a menina precisava de ser operada à hipófise e pedia-me ajuda para pagar a operação.
— Oh!, minha senhora, já viu como eu ando?! — E mostrei-lhe as canadianas. — Se fosse um homem rico, voltava-me para um Hospital ou Clínica particular, pagava e não estava à espera. Nós, os pobres, temos de esperar!... Vá ao hospital, diga o que me está a afirmar e inscreva-a. Este é o caminho dos pobres.
Falou-me ainda do frio que passa e se eu lhe dava umas janelas. - Tive-as, mas já as dei. Não me comprometi a mandar-lhas fazer, mas: — Oh!, filha, eu não posso pagar tudo!
Veio outra de pobreza extrema. Vestia de luto e disse-me que o preto correspondia ao seu estado de alma.
Saiu de casa para não aturar o companheiro que a infectou de doenças genitais. Enquanto aguardava por mim, presenciou que um pequeno dos meus tinha atirado um pedaço de pão, da merenda, para baixo das cadeiras da sala de jantar — Oh!, menino, isso não se faz! — Como pedi à Senhora da Casa que lhe fosse perguntar a razão da sua espera, referiu-lhe a atitude da criança e mandou, por ela, uma guia de tratamento com quatro remédios, no valor de 206 euros, do Hospital de Santa Maria. Uns, para tomar e outros, para injectar.
Ao ver o alto preço da receita, fui recebê-la.
Olhei para a guia e adverti-a do elevado valor. Disse-me que os dois mais baratos podia consegui-los, mas os de 95 e 56 euros não era capaz.
Perguntei-lhe se tinha filhos. — Eu não posso ter filhos.
Como deixou o companheiro? — Saí de casa e vivo com uma família amiga que sabe do meu sofrimento.
Se trabalha? — Não tenho medo da vida, mas agora não posso, logo que esteja boa, irei trabalhar. Jamais viverei com o meu companheiro, ele é um porco.
Pareceu-me ser uma mulher com dignidade.
Que faria ela, e tantas outras, na mesma situação? Ia adiando, adiando, até cair.
Já me têm aparecido com receitas de prazo vencido e eu mando-as a nova consulta.
Peguei num cartão da Casa do Gaiato e escrevi à farmácia tal: — Por nossa conta, (a farmácia já sabe, faz-nos um desconto para os nossos rapazes e para os pobres cujas receitas lhe enviamos) pode aviar para a fulana ou fulano a guia de tratamento número tal.
Assim vamos valendo à pobreza extrema e encoberta, a qual faz sofrer tanta gente que não tem portas aonde bater.
Padre Acílio