PATRIMÓNIO DOS POBRES
O telefone tocou. Porque está perto da cozinha, a D. Conceição atendeu. Estávamos a almoçar e toda a gente se deliciava com a ímpar sopa de feijão-verde que as nossas senhoras, com carinho e sabedoria, preparam nas refeições.
Ela passou pelo meio da rapaziada e dirigiu-se-me desta forma: — Venha ao telefone.
— Quem é? - Respondi-lhe ainda com a colher do caldo a sair da boca.
— É a Maria Gil.
— Ela que lhe diga o que quer -, retorqui-lhe instalado no sabor do caldo.
— Venha ao telefone. Venha ao telefone.
Naturalmente a senhora apercebeu-se da tragédia em que estava envolvida a referida pobre.
Ela sabe bem que não faço cerimónia nenhuma, em interromper qualquer refeição para atender seja a quem for e muito mais os pobres, mas naquela hora — a carne é fraca o deleite da sopa prendeu-me. Adivinhei o que se passaria pois a senhora sabe o que faz. Lá vou eu atender a pobre, cujo nome não identificava nem cara nem a situação.
Ouvi, ouvi, ouvi. A gente olha para nós e o coração bate de arrependimento. Também eu me instalei.
A desgraçada sairá do hospital onde esteve internada três meses. Algumas semanas nos cuidados intensivos. Em casa não tinha nada para comer nem fogão para confeccionar qualquer alimento. Os médicos haviam-lhe recomendado que comesse só cozidos ou grelhados. Que eu a conhecia bem, já tinha ido a sua casa, lhe havia dado algumas mobílias, quatro cadeiras e um frigorífico.
Na resposta comprometi-me ir, após o almoço, a sua casa.
O resto da sopa arrefeceu, pois o telefonema foi longo, mas o júbilo de aliviar a pobre consolou-me mais a alma do que a boa refeição.
Levei-lhe um grelhador, comprado na ocasião, e um fogão novo. O último dos vinte que adquiri, há tempos, no Jumbo, a preço de fábrica.
As senhoras arranjaram-lhe um abundante avio, onde não esqueceram alfaces e espinafres frescos.
Muita gente me dá electrodomésticos, mas estes não chegam para as necessidades que encontro e doí-me a alma dizer que não tenho, com receio de que não os possam comprar. É muito triste uma família fazer sopa num fogareiro a carvão ou num grelhador eléctrico.
Num país que se considera evoluído, marginaliza na prática, tanta família!...
Pai Américo, iluminado pelo Espírito e pela experiência da visita aos pobres saiu-se com aquele programa que é tão sólido e perpétuo como o Evangelho — Cada freguesia cuide dos seus pobres. A meu ver esta inspiração é indispensável para que o Reino de Deus avance.
Não basta a fachada social que só resolve algumas situações, é muito mais profícua, mais apostólica e mais real a visita particular a cada um. Vê-se a casa, a família, observam-se os móveis e os electrodomésticos juntamente com os filhos e os maridos e logo, se trabalham, se estudam, o que ganham, onde o gastam, etc. A visita à casa, é um livro aberto, para os pobres, para nós e para os nossos leitores. Observamos a ordem e a balbúrdia, o bom arejamento e o cheirete. Tudo fala e esclarece, repugna ou eleva.
A pobre estava muito anémica e voltando-se para mim, de olhos amarelos, pediu-me gás. - Que não tinha o dito nem dinheiro. Também eu não levava quase nada. Falta minha, pois sei muito bem, que quando me dirijo a missões destas, não posso ir de bolsos vazios.
Não direi com se arranjaram, mas, na altura tive algum receio que se quisessem aproveitar da minha boa vontade, demonstrada na prontidão com que socorri a família.
No meu regresso a casa pensava o que será o limiar da pobreza, expressão usada modernamente para designar situações de carência. Esta não está no limiar mas no fundo. Só quem vive no meio dos pobres a pode interpretar.
Pobreza não é só uma virtude difícil de entender e realizar a qual exige, sem excepções o contacto direto e persistente com os que a suportam. Corremos o risco de esvair em meros votos que só enleiam a consciência. O padre Américo, no seu estilo e compreensão desta perplexidade, aconselhou-nos a não fazer votos, mas a vivê-los.
Padre Acílio