PATRIMÓNIO DOS POBRES
Se eu fosse contar o que me aparece diariamente, dava para encher o Jornal. Não é só pobreza, que a essa vamos podendo remediar, é também a miséria.
A pobreza tem remédio, a gente dá uma ajuda e as vítimas, a pouco-e-pouco, vão-se levantando. A pobreza tem dignidade, a miséria não.
Acode-se uma vez, auxilia-se duas ou três e não saímos da cepa torta, como diz o nosso povo. Os miseráveis têm horror ao trabalho, habituam-se a pedir, tomam hábitos de burguesia e, embora de forma ridícula, apresentam-se e gostam do imaginário como os burgueses, com brincos, tatuagens, cabelos coloridos, piercings, etc.!...
Hoje apresentou-se aqui um casal novo com dois filhos e variada documentação de dívidas. Esqueceu-se, porém, de esconder o que os retratava. Ao infantário deviam 700 euros, à EDP trezentos e não sei quanto e uma carta do Tribunal por não pagarem um calote que já passava os 400 euros.
Novos, cheios de força física, tanto ela como ele. Dei-lhes uma ajuda pagando apenas o infantário de uma filha com 310 euros, mas muito mais um largo sermão: — Com tanto trabalho que há por aí na construção civil, e vocês vêm dizer-me que não há trabalho?!... Não houve!... Mas agora há!... Procurem-no. Onde virem obras, ofereçam-se e portem-se à altura. Não é ir hoje e faltar amanhã. Não é ir um mês, chegar ao fim e não voltar. Assim ninguém pode dar trabalho. Todo o trabalho tem o seu compromisso, o qual é sempre uma obrigação alargada a quem o faz, a quem o empreita e a quem o paga.
O trabalho não é brincadeira é assunto sério.
Há uma quinzena surgiu-me aqui uma mulher, já quarentona, com três filhos, abandonada pelo marido, chorou, chorou, mas a bem chorar, com lágrimas a correr por ela abaixo metendo dó. Com cinco meses de renda de casa atrasados; o senhorio a querer mandá-la para a rua e ela sem poder. Chorou, pranteou-se e eu abri-lhe uma saída: — Vá ter com o seu pároco.
Passei-lhe um cartão a pedir ao senhor prior que fosse a casa dela verificar se as razões de tanto atraso e me informasse com verdade.
Pois não foi. Passou-lhe uma carta a recomendá-la, como quem mete uma cunha e informando-me que a paróquia faz muito, não tem dinheiro e que, se me fosse possível, a ajudasse. Ora nada disso eu precisava. A minha necessidade reduzia-se a saber a verdade da situação.
A casa dela é quase rente à igreja. Não lhe tiraria muito tempo aos seus trabalhos. A senhora apresentou-me a carta eu fiquei muito triste, sem saber como agir; mesmo assim passei-lhe um cheque de 1500 euros.
Após ela se ter ido embora, a encarregada de atender os pobres na rouparia, lhes dá roupa a escolher e as vigia, vem dizer-me que a tal chorosa vinha a fumar, que até fechou a porta da rouparia por causa do fumo do tabaco. Ao sentir a porta a tampar, apagou o cigarro e escondeu-o debaixo da cadeira em que se sentara cá fora, na calçada do jardim e deixou o dito quase inteiro.
O senhor padre teve vários dias para me fazer o favor de ir ver!... Não o fez. Dá pena! Se fosse a casa de alguém socialmente colocado, não teria procedido desta maneira. Os pobres são pobres de tudo! Até destas valiosas e divinamente recomendadas visitas.
A Diocese de Setúbal celebrou as bodas de prata, de ouro e de 60 anos de sacerdócio de sete membros do presbitério. Alguns padres levaram leigos que testemunharam a alegria e a riqueza de terem os referidos sacerdotes como visitas e convivas da sua mesa! Foi bonito. Gostei muito!...
Alegrar-me-ia, porém, mais, se um pobre aparece-se do mesmo modo a contar actos semelhantes.
Sei que um ou outro visitou, conviveu e afligiu-se com a carência dos pobres da sua paróquia, mas são raros. Normalmente não conhecem a doçura espiritual de visitar a casa de um pobre. Acções destas têm um sabor divino e só o conhece quem o prova.
Padre Acílio