PATRIMÓNIO DOS POBRES
Aquela senhora, a quem arrombaram a casa pelo telhado de lusalite, aqui falada há quinzenas, veio pedir-me que fosse ver sua casinha. Para ela, dei somente quatro telhas de sanduíche de onze metros de comprimento por um de largura. O resto, foi obra dos vizinhos, também pobres, que, ao condoerem-se da situação, foram capazes de lhe deixar o tecto muito bem rematado.
— Venha ver como está tão bem a minha casinha. Já se nota a diferença. Agora está muito mais aconchegadinha.
— Pudera! -, rematei logo. - Não há-de estar?! Com umas telhas daquelas! Não se comparam nada à lusalite, gelado no Inverno e um forno no tempo quente!
— Olhe para o tecto —, exprimia o seu consolo. — Como está lindo!... Foram os meus vizinhos! Demorou... mais foi.
A sexagenária, que vive sozinha, exultava em louvores e gratidão a Deus aos vizinhos e a mim. É uma senhora muito simpática e muito limpinha, apesar da sua viuvez e vida amarga. Os dois filhos meteram-se na droga e já morreram. Levantava as mãos erguidas e os olhos para Deus dizendo-me que sente quanto Ele a ama!
Eu pensava comigo: Deus está no coração de todos os que colaboraram nesta obra com tanto sacrifício! Louvado seja Ele por estas telhas e por quem me ajudou a comprá-las.
Esta viúva vive de ervas aromáticas que vai apanhar nos montes e na Serra Aire. Anda por lá uns dias e regressa com os seus feixes e sacas que depois vende em casa e às ervanárias. Tem muitas saudades do seu marido e expressa-as com admirável elevação. — Era um homem muito bom!
A sua vizinha vive numa espelunca e apontava-me a morada coberta de lusalite e resguardada por plásticos.
— Já viu como eles vivem? - Eles os filhos, as noras e os netos!...
Apresentou-me a senhora mais ou menos da sua idade: — Agora foi multada e anda a tirar da boca para pagar a multa.
— Já viu como isto é? Com o marido entrevado, com o vidro do carro partido foi multada por andar assim sem arranjar o carro velho.
A vizinha já me havia abordado para eu a ajudar. Já paguei multas, mas agora deixei de o fazer. Elas têm, muitas vezes, um aspecto pedagógico que não é de desprezar, mas naquele caso pareceu-me que a misericórdia estava acima da pedagogia. A chover, a pobre senhora é multada no caminho, por conduzir com o para-brisas rachado.
— Oh!, senhor policia, abra um pouco mais os olhos e veja o que está por trás deste acontecimento! Eu reconheço que a lei lhe dá razão, mas a sensatez nega-lha. Quanto não custa a esta pobre pagar cem euros!? Para qualquer pessoa remediada não é tão difícil, mas para esta gente?!... Não valeria mais uma repreensão, uma ameaça ou, até, um susto? Do que tirar-lhes o pão?
Lá lhe dei cem euros para aliviar a pobre mulher daquele terrível pesadelo.
* * *
Quero também confidenciar aos Amigos do Património dos Pobres uma amargura do submundo onde me mexo.
Fui visitar aquele casal que ajudo na reconstrução da sua casa e me admirei de ele ter posto azulejo na cozinha na sala e no corredor como já frisei.
Agora vim a saber que o fez com dinheiro emprestado por alguém que julgava ser amigo tendo combinado remir o empréstimo por cinquenta ou cem euros mensais.
Pois o homem apanhou-o na rua e exigindo que lhe devolvesse o dinheiro imediatamente, dá-lhe uma grande sova.
Eu vi com os meus olhos a mossa dos socos e murros quer na cara quer no peito. Chamou-me à parte, mandando os filhos saírem de casa e ficou só com a mulher para me exibir as contusões e me dizer que tremia de medo — Que o gajo ameaçou-me de morte.
Ainda duvidei, se aquilo não seria uma farsa para me extorquir dinheiro mas, depois, certifiquei-me da verdade. O agressor transformou a ameaça por um trabalho bem forçado: - Carregar e descarregar à mão lixo de obras durante três meses seguidos, ganhando à roda de quinhentos euros mensais.
Ainda receei que pudesse ser uma armadilha, mas não foi.
Este é um mundo desconhecido da sociedade que se diz organizada.
Padre Acílio