PATRIMÓNIO DOS POBRES
A casa é uma exigência natural a qualquer família. Sem ela nenhuma atinge dignidade.
A história humana assim o revela e, até, a natureza animal o indica.
Como tantas vezes o padre Américo e os outros padres da rua que lhe têm sucedido, exclamaram: «O passarinho faz o seu ninho e o crustáceo a sua concha», só o homem nos aparece, por vezes, a viver como os irracionais, sujeito ao entorpecimento humano com que a miséria o afecta atrofiando-o.
Sem casa para viver, criar os filhos e sentir-se amparado, afectiva e equilibradamente, também do meu entender e vivenciar, têm saído estas verdades com clareza demonstrada pela vida.
O casal veio aqui com um filhinho: - A Câmara atribuiu-nos uma casa, mas ela está toda estragada. Não tem portas, nem janelas. Não tem louças, nem torneiras. Não tem chão, nem lâmpadas. Por dentro está toda partida. Até a casa-de-banho ficou sem parede.
Olhei para ambos. Um casal novo com uma sorte estragada. Alguém me havia dito que o par não era tão pobre como outros!... Eu fiquei na dúvida. Titubeei. Esperei uns dias e pedi-lhes que me dessem as medidas das janelas e das portas, e eles cumpriram. No entanto, as minhas dúvidas não se dissiparam completamente e achei que o melhor era tirar-me dos meus afazeres urgentes, ir lá ver, com eles na minha presença, e assim tomar uma resolução segura.
O Domingo é um dia bom para visitar os Pobres. O Senhor acompanha-nos mais sensivelmente e, por isso, é mais difícil sermos enganados, nem deixarmos de socorrer quem precisa. Visitar os Pobres é, ainda, uma forma de santificar mais o Dia do Senhor.
Avenida da Bela Vista, lote 15-C21. Pelo telefone, combinámos o encontro e lá nos juntámos, eles e os três filhinhos pequenos.
Dizem-me!, eu não sei se é assim, que a Câmara dá facilmente uma casa, quando ela se encontra em estado semelhante. Talvez!... Mas isso, não me interessa averiguar. O que me move, é aquela família e as três crianças sem casa e ir ajudando... e vendo.
Para já, dei aos inocentes um beijo e aos pais uma esperança: Vamos fechar a casa com janelas novas.
É um rés-do-chão com aberturas rasgadas para o sol, espaçoso, com sala, cozinha, três quartos e casa-de-banho. Uma casinha muito boa! Arranjadinha, ficará um mimo!
Vedadas as janelas, já se pode lá trabalhar, consertar as paredes, fixar a tubagem eléctrica, pôr portas nas divisões, fixar torneiras nos tubos, colocar loiças na casa-de-banho e, por fim, o chão.
Não sei bem o que se terá passado, para que uma morada tão boa tenha sido vandalizada desta maneira. Nem um taco deixaram no chão, para amostra! Tudo arrancaram!...
Será que por falta de pagamento das rendas, a Câmara pôs na rua os antigos habitantes? Terão sido eles que roubaram e danificaram, raivosa e vingativamente, a própria morada? Terão sido outros? Nada me admira e tudo me desgosta!
As rendas são baixas, diria mesmo que simbólicas. Um bem comum é assim vandalizado, sendo propriedade da Câmara, é tão difícil identificar os autores de uma acção destas e castigá-los?! É possível, mas não deixa de ser triste e vergonhoso.
Não pertence à minha responsabilidade averiguar estes problemas; e só os cito por repugnarem à minha sensibilidade e à de qualquer pessoa recta. Isto denuncia insegurança, irresponsabilidade e alheamento intolerável. O que me interessa, é esta família e a ocasião proporcionada para lhes arranjar uma casinha.
Pediam-me muito caminhas para as crianças porque, onde ainda moram, dormem todos no chão: Pai, mãe, menino e as meninas numa incómoda e vergonhosa sarrabulhada!
Não posso permitir que estas crianças se façam uns miseráveis. O pai fez o nono ano e a mãe pareceu-me uma pessoa asseada pelo que me dizia, ao falarem de uma máquina de lavar roupa: — Ah! Eu lavo-a bem à mão!
Vale a pena empenharmo-nos todos com esta família, pois é evidente ser mais fácil vencer a pobreza do que remediar a miséria.
Há muito que esgotamos camas de casal. As que chegam não têm respondido às necessidades. Vê lá se sabes de alguém que tenha alguma por aí arrumada, sem ser precisa.
Neste momento, as camas de casal teriam logo ocupantes. Colchões temos, mas faltam-nos camas. Acontece muitas vezes que, por falta de espaço, só uma cama de casal dá para três ou quatro crianças do mesmo sexo e duas camas de solteiro não cabem onde entra uma de casal.
Padre Acílio