PATRIMÓNIO DOS POBRES 

Foi pelo telefone.

— É o senhor padre?

— Faz favor de dizer quem fala?

-— É fulana.

— Mas Marias, há muitas e eu não me lembro de si.

— Mas o senhor conhece-me bem. Olhe, fale aqui com o meu assistente —, e passou o telefone.

— Daqui é o assistente da Associação dos Professores e amigos das crianças do Casal das Figueiras.

Fiquei contente porque sempre ouvi dizer bem desta associação pelo bom trabalho realizado e mais ainda, porque o seu fundador havia sido, antes, professor das nossas escolas, aqui na Casa do Gaiato, levando deste modo a semente que o ajudou a abalançar-se naquela boa criação.

O homem lá me contou a situação da família e me disse o nome da senhora que pelo apelido, um pouco raro, me lembrou uma família que o Património já ajudara, pelo menos duas vezes.

— Sim senhor já sei quem é.

— Pois olhe o problema é que tem água cortada, o marido como sabe, vive acamado, devem uma soma grande a mercearia e também à EDP e eu não tenho saída nenhuma. Se a pudesse ajudar mais esta vez, nós agradecíamos muito. E quando é que poderíamos falar?

— Amanhã —, respondi —, pelas 9:00h.

— Vou ver se tenho motorista que me leve aí.

Quando me falou em motorista, fiquei alerta. Então, esta gente assiste a pobres e tem motorista? Não é assim que nós fazemos. A gente vai e leva o carro da Casa. Aqui não há condutores para estes serviços. Quase me arrependi de me haver comprometido, em receber o senhor mas... aguardei.

Ao outro dia, minutos antes das 9:00h., já estava o assistente e a senhora que o conduzia. Tanto um como a outra, chocados com a terrível situação daquela família enterrada em dívidas e sem solução à vista.

Sempre me pareceu que uma tragédia destas, descrita por um técnico, deveria ter resposta pronta nos serviços sociais do Estado. Mas não, a resposta é negativa. Resolveram então, bater à porta do Património dos Pobres, como tanta gente aflita.

Que havia eu de fazer?... Passei-lhes um cheque de trezentos euros com outro endossado às Águas do Sado sem quantia descrita, por eles não saberem ao certo a dívida, evitando assim que andassem para trás e para diante a gastar tempo e combustível.

O assistente foi cavalheiro e, antes de pagar a água, achando a importância elevada perguntou-me se podia meter o cheque. Pois então?... Se essa família não tem água e não há outro remédio, que havemos de fazer?

— Passe —, disse resolutamente, ficando com um doce na alma: O Património é a retaguarda para o desamparo dos Pobres.

Veio também aquela rapariga com três filhas que ajudamos substancialmente com roupas, mobília, electrodomésticos e arranjo da casa. Há muito que não se assomava à nossa porta. Agora apareceu com uma dívida de 1.403,00 euros de renda atrasada e uma carta do senhorio a ameaçá-la de despejo.

Pedia que eu lhe desse ou emprestasse que me pagaria em pequenas parcelas.

— Mas como?... Com uma renda tão alta e três filhas na escola, sozinha a ganhar, como me irás pagar?

Foi chorar para a senhora que sempre a tem amparado e condoído das aflições em que ela se vê!

E vem a senhora ter comigo: — Então, não vai ajudar a rapariga?

— Oh! senhora, são 1.403,00 euros!...

— Mas não tem dinheiro que chegue? Olhe que a pobre não tem ninguém e vai para a rua.

— Ela que venha cá —, disse.

Eu estava na sala de jantar com o breviário na mão a ouvir os salmos. A palavra de Deus suava aos meus ouvidos e entrava-me dentro.

Ela trazia o cartão do senhorio polido e brilhante como convém a um homem de negócios, mas só com dois nomes.

— Mas!... Ouve lá, basta pôr no cheque este nome assim? Ele não tem mais apelidos? O melhor é telefonar-lhe.

Pelo cartão, a mãe desamparada dava-me o número para o meu telemóvel e a seguir, foi ela quem telefonou.

— Não lhe digas que sou eu —, interrompi. Ela desenrascou-se bem, afirmando que era o padrinho: - O meu padrinho vai passar-me o cheque, diga-me o seu nome completo.

Pronto. Estava tudo resolvido.

Passadas umas duas horas, o senhorio ainda telefonou para falar com ela com o meu número.

— Já não está, saiu há bastante tempo.

Não sei o que lhe queria, mas ficou sem saber quem era o padrinho.

Mais outra mulher com renda de Casa.

— Mas se a renda é de uma casa da câmara eu não pago —, disse-lhe de raspão. A senhora ficou, dirigiu-se várias vezes a mim, respondendo-lhe eu sempre do mesmo modo.

— As rendas da câmara são muito baratas, paguem-nas.

Ela voltou ao outro dia. Era uma pessoa com roupas pobres e apareceu-me, como vindo a pé da cidade. Pediu, insistiu e eu fui firme: — rendas dessas casas não pago.

A senhora desapareceu da nossa vista e ainda perto fui atrás dela para a cidade, desejando dar-lhe boleia na nossa carrinha.

— Não obrigada, eu prefiro ir a pé.

Afinal, a poucos metros, parada na berma da estrada, aguardava-a um carro bom, conduzido por um senhor a fumar, ao volante.

Olha?!... Disse para comigo, o Senhor guardou-me desta.

Padre Acílio