PATRIMÓNIO DOS POBRES
Hoje, dia da Santíssima Trindade, a Santa Igreja, põe em nossa boca um pedido ao Senhor nosso Deus: que todos reconheçamos a dignidade Divina em cada pessoa humana.
Esta oração afundou-se na minha alma, como uma mó de um moinho se submerge no alto mar. Saímos da Capela: o povo santo de Deus, que connosco celebra o Mistério Sagrado, os Rapazes, eu também. Na grande galeria que liga o alpendre da Capela à sala-de-jantar, encontro um casal sentado no banco comprido, com três crianças a chilrear à sua volta.
Tinham entrado mais tarde na Capela, presenciando a nossa oração. Acho que não sabem rezar. Esperavam-me. Só quando cheguei junto deles, me apercebi quem eram. Pela terceira vez vieram à minha procura. Agora, pediam uma ajuda para alugar a casa, pois, com cinco filhos, afirmaram-me, terem sido escorraçados de uma tenda onde se abrigavam. Na primeira vez, exigi-lhes o contrato de arrendamento para me segurar, pois, apesar de tanta cautela, posso ser enganado. Voltaram, então, com um papel branco, escrito a computador, com quatro ou cinco linhas, sem assinaturas, nem reconhecimento.
Neste Domingo, apareceram com o mesmo papel, já amachucado, e duas assinaturas a esferográfica, sem qualquer autenticação.
Não me bastou dizer-lhes que aquilo não era nada, não era contrato nenhum, nem tinha qualquer valor.
Que saída meu Deus? Que resposta a este confronto que me envolvia? O peso da oração era cada vez mais forte dentro de mim.
Fiz-lhes um rápido avio, meti-os todos no carro da nossa Casa, e lá vou eu à procura da senhora que lhes alugaria a casa. Não havia outro caminho para responder à pressão do Espírito. A dignidade Divina, naquelas pessoas humanas, punha-me a prova.
Durante o caminho, falámos deles, que não sabem ler, dos filhos que põem no caminho da miséria e da falta de trabalho a que, sobretudo ele, não está habituado, etc.. Conversas que tenho sempre com os pobres encontrados em situações semelhantes.
Mas, fomos dar aonde? Sim, à senhora que aluga a casa. Com quem falei, garantindo-lhe que pagaria a caução e o primeiro mês. Mas encontro mais, muito mais: quem os acolhia há nove dias na sua casa? A Janete, que tem cinco filhos, véspera de seis e um marido preso!
A criançada toda junta num andar reduzido, seria uma chilreada maior do que a de um bando de pardais a gorjear, para se acolherem, na mesma árvore, ao fim do dia!
Os pobres são capazes das mais belas e mais sacrificadas ofertas!
Se eles batessem à tua porta, que farias ao sentir a sua dignidade?
Mesmo ferido como estava, naturalmente não os acolheria durante tanto tempo nesta Casa. Sinal de que a minha pobreza tem ainda muito que avançar.
A Janete viera cá buscar alimentos e roupas, mas não contou nada do que se passava na sua casa.
Enquanto o carro deslizava rumo à cidade, fui sabendo deles o que acabo de contar. A sua idade ainda não chegou aos trinta. Numa sociedade como a nossa, isto parece não ser possível. Ele diz que procura trabalho e não encontra.
- Não? -, respondi-lhe - Quem quer trabalhar, arranja sempre alguma coisa para fazer! Procura, procura, procura sempre, até encontrares. Graças a Deus, já vai aparecendo onde possas ganhar o pão de cada dia, mesmo sem conhecer as letras. Vocês ainda são muito novos. Têm muito tempo para viver. Há na cidade, pelo menos, duas escolas onde podereis começar a ler. Não é justo gerar filhos para os outros governarem. Vós nascestes de famílias miseráveis que nem sequer vos obrigaram a ir à escola e, agora, fazeis o mesmo aos vossos meninos!
Muito lhes preguei naquela hora de viagem, apertado como me sentia, com a Dignidade Divina de cada um.
Pelo que
lemos e ouvimos, o Papa Francisco tem experiência destas andanças que lhe
fortalecem a fé, a coragem e a lucidez para indicar à Igreja as periferias da
sociedade. Nessa gente e nesses lugares, topamos com o presépio, a
multiplicação dos pães, as bodas de Caná, a Cruz, a Ressurreição e a Vida. Sim,
é no meio dos pobres, que melhor descobrimos os nossos pecados de omissão e a
Pessoa Viva de Jesus.