PATRIMÓNIO DOS POBRES

A quinzena teve notas de todos os matizes, mas fixei-me, sobretudo, nas duas onde a dignidade conquistada e a miséria vencedora caminham a par.

São dois irmãos, ou melhor dito, homem e uma mulher. Ele, criado na Casa do Gaiato e ela, a esmo, por esse mundo sem leme, sem o mínimo de humanidade.

Durante muitos anos, ela veio aqui pedir comida, roupa, avio de receitas, etc..

Enquanto o irmão estava connosco, apelidou-se sempre "eu sou a irmã de fulano". Ainda algumas vezes o desafiou para ele ir passar o Natal à sua casa, mas com resultados negativos. Nunca o rapaz se sentiu cativado pelo convite familiar, embora tenha passado alguns dias pela morada dela.

Foi sempre um olhar compadecido e uma visão sobrenatural da pessoa que nos abriram as portas do coração. Sabíamos que ela vivera ora com um, ora com outro e hoje não sei com quem partilha a sua vida. É uma pessoa diminuída, quer pelo ambiente que sempre a rodeou, pelo baixo nível de vida e de cultura e, também, pela falta de instrução.

O irmão, mais diminuído que ela em capacidade cognitiva, foi avançando pouco-a-pouco e conseguiu um nível de vida humano muito razoável, sobretudo num sentido de dignidade, que não tem comparação nenhuma com o estado a que chegou a sua familiar. Uma figura de mulher!...

Num destes domingos, via-a ao fundo da Assembleia Eucarística, e pareceu-me ela, mas não fixei nada na sua vida.

Notei que, a certa altura, saiu da capela e, passado algum tempo, voltou. Vim a saber, mais tarde, que o seu regresso foi notado pelas circunstantes, por um cheiro activo a tabaco. A desgraçada não aguentou o desejo do cigarro e, até durante a Missa, saiu para fumar.

Estas cambiantes foram-me transmitidas após ela se ter retirado da Casa do Gaiato, pois mal saí da capela, agarrou-se a mim em lamúrias, a que já estou habituado, mas encheu-me o coração de pena!

"Pobre gente!" —, pensei eu. "São como ovelhas sem pastor", diria O Que Se Condoeu dos pecadores.

Quantos pecados de omissão de tantos anónimos carrega aquela infeliz e quanta exploração sexual?!

Se eu tivesse sabido da cena do fumo, talvez reagisse como o meu leitor: "Então, tens dinheiro para tabaco, mas não tens para comer?"

Perguntei-lhe pelo irmão:

— Já foi ter com o seu fulano?

— Ele nem me quer ver!

— Mas ele tem uma casa dele e uma vida como deve ser, talvez a possa amparar!...

— Ele?! Se me vir, corre-me à pedrada. — Formas de falar e exprimir o nojo espontâneo fraternal que, quem sofre a vergonha, não é capaz de mais.

Nestes retratos, vê-se o que fez uma Casa do Gaiato: De um lado, um homem grato e feito pela Obra, do outro, a miséria construída pouco-a-pouco pelo abandono do mundo e a exploração carnal.

Que devo fazer agora? Sim, abandonar também? Alimentar a miséria?

Realmente, o Padre Américo tinha razão quando gritava: "A miséria vence e nós somos uns derrotados!"

Padre Acílio