PATRIMÓNIO DOS POBRES
Acossado todos os dias com o sofrimento e a penúria dos irmãos, acho que esta comunicação devia ser propagada amplamente e debatida por todos os órgãos eclesiais portugueses e das várias nações, onde Cristo é conhecido e adorado.
Hoje, dia de Cristo Rei, não podemos olhar somente para o Homem, vestido com longa túnica e cingido no peito com cinto de ouro, mostrado no apocalipse de São João, mas para Cristo encarnado na sua vida humana, modelo de vida de todos os homens, o qual anunciou a boa nova aos pobres e, fez deles uma das suas presenças contínuas através das gerações.
Um dos pecados causadores da pobreza no mundo, aponta o Sumo Pontífice, é a indiferença generalizada. Não só a injustiça social, a miséria moral, a avidez de poucos, mas a indiferença atinge quase todos.
Não vale somente dar bens a instituições e trabalhar nelas, é preciso sempre estender a mão ao pobre; (o Papa usa os mesmos termos que o Padre Américo) e encontrá-los, fixá-los nos olhos, até abraçá-los (como Ele faz) para lhes fazer sentir o calor amoroso que rompa o círculo da solidão. A sua mão estendida para nós é também um convite a sairmos das nossas certezas e comodidades e, reconhecermos o valor que a Pobreza encerra em si mesma.
Entre os muitos que nos estenderam a mão nesta quinzena, apareceu uma mulher com seis filhos a rogar uma ajuda, para a renda da casa (?) uma garagem onde se acoita com eles.
— Aquilo tem luz e água?
— Tem sim senhor!
— E quartos?
— Não, aquilo é só uma divisória.
— E o seu marido!
— A gente não nos dávamos bem, e assim ele foi para o Alentejo.
Aquela cara não me era desconhecida; mas eu não me lembrei logo o princípio dos nossos relacionamentos. As pessoas da Casa e os rapazes reconheceram-na!
— Então não se lembra? É aquela que veio tantas vezes para lhe darmos uma casa!
Já me recordo. Como dei um andar a um irmão do seu homem, ela achou que eu me devia condoer dela e dar-lhe também um.
Moeu-me durante longos e maçudos meses! Ela, o homem e os filhos. E de tal forma... que lhes alvitrei alugar uma casa na cidade, pagando eu a caução e o primeiro mês.
Fui com ela ver o andar, falei com a senhoria na mesma casa e pareceu-me tudo seguro. Passei o cheque à dona da casa - setecentos euros!...
Afinal, vim a saber depois, fui enganado.
Estava tudo assente entre a fingida senhoria e ela. Não alugou casa nenhuma. A hipotética dona recebeu o cheque, depositou-o, dividiu o dinheiro entre ambas e guerrearam por causa disso. Os vizinhos é que, escandalizados, me vieram contar.
Passado mais um ano, o homem começou outra vez a telefonar: - Que tivesse pena das crianças que morriam de frio, que a GNR não os deixava acampar, que para isso tinham de se esconder, que enquanto não tivessem casa as crianças não podiam ir à escola, e assim não recebiam o abono dos filhos, nem qualquer ajuda estatal.
Numa noite de chuva intensa, telefonaram a dizer que estavam nos Bombeiros e ela fez-se porta-voz daquela Corporação, para eu os ir buscar.
Foi tanta a insistência e tão negro o quadro que me apontavam que caí e fui ver onde estavam acampados. Era realmente uma propriedade verde e num altinho. Duas meninas, embrulhadas numa manta, fingindo dormir sobre a relva. Mas, olhando... não vi, à volta, nada pisado. Compreendi então que as crianças foram para ali, a fim de me perturbarem o coração. Voltei as costas muito zangado - aquilo era um novo embuste.
Agora, passados anos, ela volta de novo e eu já não me lembrava das cenas passadas.
Que fazer? Sim! Que fazer?
O Papa encoraja-me a ir lá. O Evangelho também. Quantas vezes devo perdoar ao meu irmão? E tu que me lês - que achas?
Irei ver se o marido foi para o Alentejo ou não. Se eles dormem todos a monte. Se as crianças vão à escola. Como vive tanta gente junta e de que se alimenta.
Vou olhar para os seus olhos e vê-los, de novo, de forma diferente, levando comigo a Misericórdia do Pai Celeste.
Sim, aparecerei quando eles menos pensarem, com uma companhia que sabe bem onde fica a garagem.
Penso ser isto que o Papa me pede a mim, e a todos os cristãos. Como o Padre Américo na universidade da pobreza real que lhe deu tantas e tão profícuas lições!
Amar!... Amar sempre!... Nunca desanimar! A Misericórdia de Deus é infinita!... Ele está sempre pronto a perdoar! Os homens é que não. O Reino dos Céus é dos loucos!
Padre Acílio