PATRIMÓNIO DOS POBRES

    Um casal ainda novo, já com quatro filhos, foi o meu guia para encontrar, no centro da cidade de Setúbal uma ignorada bolsa de miséria e pobreza.

    Acho muito interessante e sem graça nenhuma, o substantivo bolsa usado actualmente pelos sociólogos teóricos para designar um conjunto de famílias a viver miseravelmente e em estrema pobreza.

    Bolsa significa um pequeno saco onde se guarda qualquer coisa; mas, esta que encontrei é enorme. São muitas as famílias a viver assim.

    Pela frente depara-se-nos um muro alto a vedar tudo e um caminho largo de terra batida com alguma gravilha e saibro. Por trás do muro moram famílias em casas velhas, abarracadas.

    Primeira encontrada pertencia ao casal meu guia. Como explicar!? Não é fácil. Entramos no quintal com porta numerada, desce-se três degraus altos e caminha-se por um carreiro, em cimento, inclinado para a barraca, com seis metros de comprimento e um de declive. Esta via leva-nos dentro do casebre sem portas onde dois reduzidos compartimentos fazem de cozinha de um lado e do outro da vereda. Em cima de uma reduzida mesa, num dos lados está uma placa de fogão onde se fará, algumas vezes o comer, e no outro um pequeno lavatório metálico para lavar a loiça. Depois é que se encontra o fecho da casa: - uma porta de pinho muito apodrecida que deixa entrar o frio e o calor.

   Estes dois apoios de fora, são cobertas de chapas velhas e meias partidas de lusalite, colocadas transversalmente umas sobre as outras, as quais recebem a água da velha e inclinada cobertura em telha, fazendo naturalmente do carreiro descrito, antes da porta um forte regato, desviado para fora por uma altura de cimento.

    Quando as chuvadas são fortes, aquilo deve ser um mar de água!

Entramos. Deparou-se-me uma pequena sala com um sofá de duas pessoas, sebento e apodrecido, como única mobília. Ao lado, o quarto do casal sem janela e sem porta, onde só cabe a cama. A única porta da casota é a que referi. Outra abertura no fundo da sala indica-nos o quarto dos meninos, onde também, cabe apenas uma cama de casal. Mas eles não tinham camas nem lençóis. Governavam-se com os estrados assentes em cima dos tijolos.

    Cá em cima, junto ao muro que tudo tapa e ao nível dos primeiros degraus, está a casa de banho, sem lavatório nem bicha de duche. Disseram-me que punham água por cima do corpo, com um balde.

      Aquilo era tudo tão velho e tão desaconchegado que me apeteceu ir lá com uma máquina, pôr tudo abaixo, aproveitar o entulho e construir em cima uma casinha para aquela família. Mas não. O casebre é do tio. Eles são novos. Preferi dar-lhe a mobília necessária, roupa e loiça mais um beliche para a menina, com oito anos, dormir por cima dos irmãos.

   Ele tem vinte sete anos e só a quarta classe mas pareceu-me desembaraçado e terá de se esfolar para arranjar a casa.

    Os passarinhos fazem o ninho antes de criar os seus filhotes, a raposa as suas tocas e toda a natureza nos indica que antes de gerar filhos é preciso criar-lhes o ambiente.

    Vamos comprar chapas de sanduíche que isolarão o calor e o frio, vedarão a chuva e darão um ar de asseio ao tecto da habitação. A seguir, sempre com ele, modificaremos a cozinha, fechando-a com porta. Aos quartos e à sala daremos janelas e talvez coloquemos um chão mais agradável por cima do cimento frio.

    A isto poderemos depois chamar luta contra a pobreza; pedagogia social, promoção da família, todos os chavões que enchem quase sempre os média.

     Na mesma bolsa (?) a trezentos metros de distância havia encontrado um casebre semelhante.         Dei-lhe a mesma receita, mas eles ainda não se agarraram. São novos. Apoiamos com tudo o que o bom senso e a prática nos inspira, na certeza sempre actualizada da fé cristã que quanto mais damos mais temos para dar.

    A pobreza destas pessoas assenta sempre numa raiz de fragilidades que as impediu de estudar, aprender a trabalhar e, muito menos, lhes deu hábitos de trabalho. Ilumina-nos a esperança que os seus filhos ultrapassem esta medonha barreira de ignorância e... amanhã, criem outra mentalidade que ajude as gerações futuras a alimentar um ideal de dignidade humana.

Padre Acílio