PATRIMÓNIO DOS POBRES

Deram-nos, para a Casa, uma grande e variada quantidade de fruta, bem madura, tirada de armazéns frigoríficos.

Várias vezes, a mesma entidade benfeitora, tendo géneros alimentícios a chegar ao fim de prazo de validade ou a começar a apodrecer, nos telefona para irmos buscar e nós vamos.

O que se aproveita do que permanece em bom estado, fica para nós, para darmos aos pobres que demandam a nossa porta e, se está deteriorada, utilizamo-la para alimento dos animais; se podre, vai para a estrumeira a não ser batatas que devem ser enterradas porque poluem o estrume e podem ocasionar doenças a algumas culturas.

Desta vez, a fruta e o tomate vinham bem amadurecidos e pouco estragados. Que fazer a tanta fartura? Não tínhamos outro remédio senão ir distribuir estes dons pelos mais pobres da cidade às famílias mais carentes. Foi uma riqueza e uma alegria para todos.

Por três vezes, nos dirigimos aos pontos nevrálgicos da pobreza setubalense a matar a fome de fruta a tantas crianças e adultos que raramente a provam.

Levei comigo dois rapazes seguros, com ordens para que a distribuição fosse equitativa e variada.

Eles concediam a cada pessoa adulta ou criança credenciada pelas vizinhas como substituta da mãe de família, dois pratos de sopa de ameixas vermelhas ou amarelas, dois cachos de banana, dois pratos de maçãs. E eu dava, à parte, uma dúzia de tomates muito madurinhos, que punha por cima das frutas, em sacos, panelas, tachos, terrinas ou alguidares que as mães traziam junto de mim, transbordantes de alegria.

Algumas exprimiam a sua satisfação dizendo que não precisavam tanto, o que me caía bem, por exibirem um espírito de pobreza e de economia. Outras, ávidas e ambiciosas queixaram-se que o Milton só lhes havia dado um cacho de bananas. Logo eu embarguei a partilha para interromper a distribuição do rapaz: - Ó Milton, não destes dois cachos de bananas a esta senhora?!

Ele peremptório e de olhar fixo na gananciosa: - Dei sim senhor! Dei dois a cada senhora e também a si. Não venha cá com histórias.

Os rapazes exaltaram-se por causa do barulho e da confusão que algumas faziam, querendo adiantar-se às outras, naturalmente com medo de a fruta não chegar também para si.

Às tantas, oiço um estrondo. Os rapazes fecharam ruidosamente a porta de trás da carrinha e deram ordens!

- Ou fazem uma fila ou a gente vai-se embora para outro lado.

Foi o remédio santo. Logo se organizaram em fila e a desordem acalmou.

Que faria eu sozinho? Pensei comigo. Os rapazes têm a escola da vida e esta experiência ainda lhes acrescenta mais sabedoria.

Qual é a instituição que faz isto aos seus educandos?... Sim, onde está ela? No princípio cada Casa do Gaiato tinha uma Conferência Vicentina e os rapazes iam visitar os seus pobres ao Domingo, no fim da Missa, levando-lhes alimentos e roupas que pediam às senhoras da Casa. Hoje não temos Conferência, mas quase todos os dias os rapazes e as senhoras distribuem bens aos pobres que nos batem à porta.

Esta acção além de lhes facultar o contacto com os pobres, também lhes dá uma visão mais próxima da realidade social, sentido de economia, refreia a ambição e lhes incute nobreza de ideal!

Neste, como noutros vértices da educação humana, as Casas do Gaiato foram, e são pioneiras.

Padre Acílio