PÃO DE VIDA

De como Américo Monteiro de Aguiar chegou ao Seminário de Coimbra

Para assinalar o Centenário [1925-2025] da entrada de Américo Monteiro de Aguiar no Seminário de Coimbra, cuja admissão ocorreu em 3 de Outubro de 1925, importa rememorar de relance alguns passos significativos que precederam este acontecimento pessoal e eclesial marcante. Na verdade, considerando a decisão acertada do então Bispo de Coimbra — D. Manuel Luís Coelho da Silva, acabou por ter um final feliz!

Américo de Aguiar regressou a Portugal em Janeiro 1923, depois de ter trabalhado como despachante alfandegário em Moçambique — Chinde e Lourenço Marques — durante 16 anos, para onde foi em Novembro de 1906, ao encontro do seu irmão Jaime. No seu itinerário vocacional, entre Julho e Setembro de 1923, aconteceram momentos espirituais muito importantes que o fizeram não voltar para África, respondendo assim afirmativamente e de forma conclusiva aos múltiplos apelos de Deus que foram acontecendo desde a infância, para seguir Jesus em radicalidade evangélica. A esses momentos determinantes chamou marteladas. Esta designação martelada vem confirmada num testemunho escrito sobre um encontro para esclarecer dúvidas, em 1923, na cidade de Penafiel, com o Pároco e antigo companheiro de Escola Primária, em Galegos — o Padre Dr. Avelino Soares. Diz assim: «[…] Sabes, Avelino, é uma 'martelada'. Olha é uma 'martelada'! Não sei explicar-te melhor. […]» [O Gaiato, N.º 327, 15 Set. 1956, p. 2]. Este termo pessoal terá reminiscência do tempo [1902-1905] em que foi marçano no Porto, a vender ferros?…

Como está documentada esta nova fase do seu percurso de vida, de uma carta ao seu amigo Simão Correia Neves [1888†1965], de 17 de Outubro de 1923, recortamos o seguinte: «[…] Escrevi ao [Manuel] Mendes [de Xai-Xai] a dizer que não volto a África e os negócios daqui ficam com o meu irmão, que tem office no Porto com Vitorino e quejandos. […] Eu vou para um convento de franciscanos em Espanha. Razões por que deixo a vida e o mundo? Muitas e hei-de dizer-lhas quando você vier ao continente e me for visitar. Este passo é filho de raciocínios muito profundos, hoje já de ordem espiritual e que portanto você não os poderia compreender. […]» [O Gaiato, N.º 414, 23 Jan. 1960, p. 2].

Depois, à beira de fazer 36 anos, Américo deu o passo derradeiro, mas ainda em dúvidas, de acordo com uma carta para o mesmo amigo Simão, enviada de Paço de Sousa, de 20 de Outubro de 1923. Recolhemos estas linhas muito importantes sobre a sua resolução final, em que anuncia a sua partida para o Convento Franciscano de Vilariño de la Ramallosa, em Tuy: «É amanhã que parto para Espanha; toda a minha gente julga que África é o meu destino. E pode ser que seja, quem sabe?! Se soubesse como esta transformação brusca de vida e hábitos me custa?! Mas que quer que lhe faça, custava-me muito mais viver no mundo! […]» [O Gaiato, N.º 415, 6 Fev 1960, p. 1]. De referir que indicou para correspondência o pseudónimo de Joaquim Ferreira Rodrigues.

O grande salto de Américo de Aguiar para esse Convento da Ordem dos Frades Menores, na Galiza, é resumido assim pelo seu irmão mais velho, Padre José de Aguiar: «Por particulares disposições de espírito, suscitadas por correspondência aturada com o Prelado de Moçambique, D. Rafael da Assunção, actual Bispo de Limira, resolveu abandonar a vida que levava, e em Outubro de 1923 entrou no noviciado, no convento de Santo António de Vilariño, Tuy, onde esteve como Postulante 9 meses, estudando Ciências e Latim.» [O Gaiato, N.º 326, 1 Set. 1926, p. 2]. D. Rafael da Assunção deu esta informação, entre outras: «[…] Foi seu professor o P. Albano Alves [1886†1956], abalizado latinista, que já em Itália havia ensinado esta língua. […]» [O Gaiato, N.º 332, 24 Nov. 1956, p. 2]. Na sua formação conventual, chegou a tomar hábito de noviço franciscano, como testemunhou bem o Padre Alexandre dos Santos [1875†1961]: «[…] A 14 de Agosto de 1924 Américo tomou hábito com mais uns quinze noviços, para professarem no ano seguinte, no dia 15, Assunção de Nossa Senhora. Agora é Frei Américo. Fr. Américo era um S. Francisco por vocação e, de facto, sem ele, talvez, e nós realmente darmos por isso. […]» [Revista Alma, 21, Set. 1956, p. 4]. Tomou o nome religioso de Frei Américo de Santa Teresa, talvez pela sua devoção a Santa Teresinha do Menino Jesus e em memória de sua Mãe Teresa Ferreira Rodrigues.

Segundo o testemunho do Padre José de Aguiar: «[…] Depois tomou o hábito e foi noviçodurante um ano, continuando durante esse tempo os estudos de Latim. Tinha passado 21 meses, após a entrada no convento, quando, em reunião de Capítulo, a votação lhe foi desfavorável. Chamado pelo Guardião, este pediu-lhe para desistir, alegando que 'não assimilava a vida monástica por ser muito impressionista'. […]» [O Gaiato, N.º 326, 1 Set. 1956, p. 2]. Na verdade, em Frei Américo era notória a virtude da caridade, dedicando-se aos pobres e doentes, como ao Irmão leigo Frei Matias [Gonçalves Barroqueiro, 1840†1927]. É, pois, de rectificar — por conselho, em vez de votação — conforme anotou, com fonte segura, um estudioso desse Convento — o franciscano Padre Fr. Arlindo Rodrigues da Silva Barbosa [1924†2012]: «De mão do P. Luís do Patrocínio [1871†1952] encontramos este registo a 6 de Agosto: 'Às 9 1/2 votação dos noviços e saindo, por votação, Francisco Amaral e Fr. Aníbal Beleza, e sem votação, mas por conselho, Fr. Américo Aguiar. Aqueles dois foram de tarde, na camioneta com o Fr. Cristóvão, por Guardia, Caminha. Este, à noite, pela camioneta para Tui, com o Fr. Francisco Botelho, Fr. Adjuto e Fr. Cristóvão'.» [vd. Franciscanos Portugueses na Galiza — Vilarinho da Ramalhosa (1905-1980), vol. II, Vilarinho, 1995, p. 47, inédito]. O Padre Fr. José David Antunes Gonçalves [1916†2018], bom amigo franciscano que conhecemos em Montariol, disse-nos que Fr. Américo: Era tão grande, tão grande que não cabia entre nós! De notar que foi o autor da capa da 1.ª edição do livro Obra da Rua, 1942; e do célebre desenho de Jesus Cristo, 1976.

Tendo sido aconselhado a sair do Convento franciscano de Vilariño, Américo de Aguiar ficou naturalmente muito abatido; e assim fez a viagem de Vilariño de la Ramallosa para o concelho de Penafiel. Acabou por se dirigir para casa do seu irmão Padre José de Aguiar, em S. Miguel de Paredes, onde era Pároco. O seu estado de espírito foi descrito por um amigo penafidelense — António Moreira da Rocha — desta forma: «[…] Mais tarde, o irmão falou-me um dia da profunda emoção de que vinha possuído o Américo ao entrar em sua casa, despedido do convento — tal era o 'desfalecimento' que a sós no quarto irrompera em copioso pranto. Apesar disso, nunca descobri no seu coração o mais leve ressentimento contra os padres franciscanos de Vilarinho. […]» [Boletim Penafiel, N.º 1, 1972, p. 40].

No apontamento biográfico citado, o Padre José de Aguiar resumiu assim os momentos posteriores à saída de Vilariño: «[…] Em Julho de 1925 chegou a casa desfalecido, desorientado com tal decisão imposta pelo Guardião. Insistindo pela vida eclesiástica, pediu-se ao Bispo do Porto, D. António Barbosa Leão, a admissão do Américo no Seminário diocesano. 'É veleidade. Não o admito. Tenho tido desgostos e desenganos em casos semelhantes. Poupe-me esse desgosto'. Falou-se ao Senhor Bispo de Coimbra. D. Manuel L. [Luís] Coelho da Silva: 'Que venha. Vamos a ver o que sai.'. Saiu o que saiu. Mais tarde, falando-me o Bispo do Porto sobre o Américo, disse-me 'que estava arrependido pelo não ter admitido, que tinha dele magníficas informações pelo colega de Coimbra, que este o considerava uma bênção para a sua diocese'. E, como desabafo, íntimo: 'Ou cá ou lá, serve a Igreja, enfim, presta serviço a Deus'.»[O Gaiato, N.º 326, 1 Set. 1956, p. 2].

No próximo apontamento, daremos mais notícias — da sua admissão: De como Américo Monteiro de Aguiar entrou no Seminário de Coimbra

Padre Manuel Mendes