
PÃO DE VIDA
A excelência do cristianismo
Depois de ser dada a conhecer uma carta introdutória apologética de Américo Monteiro de Aguiar ao seu irmão Jaime, de Junho de 1927, é chegada a hora de começarmos a transcrever o referido exercício, de Março de 1927, enquanto aluno de Teologia no Seminário de Coimbra, cujo título se reveste de originalidade, há cerca de um século atrás. Aqui vai:
«[p. 4] A EXCELÊNCIA DO CRISTIANISMO SOBRE O ISLAMISMO
Definição de religião.
O que é religião? Esta palavra vem-nos do vocábulo latino – religio –, com que os primitivos romanos costumavam designar os agentes que actuavam nas forças da natureza, fora da sua directa intervenção e por maneira inacessível aos seus conhecimentos. Assim é que, lançando um grão de trigo na terra e verificando que este germinava e aparecia em nova espécie sem o concurso nem acção dos homens, vem o termo religio para dar a ideia do fenómeno.
Religião é então uma palavra que exprime a ideia da grandeza transcendente da essência das coisas e da harmonia da natureza e é também a expressão universal com que a humanidade procura fora de si o segredo dos seus elementos constitutivos, o porquê da existência e o eterno enigma do destino. Palavra misteriosa, magnética, comunicativa, que traduz os id[eais] mais elevados e as necessidades mais imperiosas do homem.
Mas uma palavra de significação tão extensa não podia de maneira nenhuma demor[ar?] no espírito da humanidade como mera abstracção do pensamento e assim é que, uma vez materializada, nós podemos definir religião um conjunto de actos externos por meio dos quais prestamos honra e obediência e damos glória à divindade.
Assim definida, a religião surge-nos como um valor espiritual do homem; é uma realidade que se manifesta nas artes e nas ciências, distinguindo civilizações, marcando épocas, sintetizando as grandes revoluções do pensamento.
Tendo observado, como acabámos de observar, o simples termo que exprime uma ideia e a ideia que se converte em factos, eis que uma nova circunstância se nos apresenta, que põe imediatamente um grave problema ao espírito irrequieto do homem – investigador e que não há religião, mas sim religiões.
Dificuldades.
Mais ainda. No seio das grandes religiões fixadas, há notáveis divergências, teológicas e filosóficas. É o monge Agostinho Lutero, com o seu justificado grito de revolta; são os homens de 39 [1793?], rejeitando o sobrenatural, para cair no extremo oposto de consagrar a catedral de Paris à deusa razão, personificada na prostituta Maillard, e decretar festas à justiça, à igualdade, à piedade e semelhantes abstracções, personificadas na… necessidade do sobrenatural. É o grande pensador Taine, que vai levar as filhas a um convento para educar. É o nosso sublime Junqueiro, que escreve a Velhice [do Padre Eterno] para se retratar e escrever O Caminho do Céu. Oh suprema contradição do espírito humano!
Quem tem razão? Aonde está a verdade?
[p. 5] O conhecimento da história das religiões no seu conjunto demanda uma tal erudição, que seria moralmente impossível um homem só conhecê-las todas, mas o simples facto de sabermos que há muitas religiões, leva-nos a concluir os seguintes princípios: primeiro, que o homem é um animal essencialmente religioso em todo o lugar do espaço e em todos os momentos do tempo. Segundo, que alguma coisa de comum existe nas religiões, visto como sendo elas diferentes e até opostas, a todas damos o mesmo nome. E finalmente, que se não pode afirmar que uma é tão boa como a outra ou que todas são indiferentes, pela mesma razão que seria um absurdo dizer que o resultado duma soma é tão bom como o outro ou que todos são indiferentes. Só um pode ser verdadeiro. […]».
]
No primeiro capítulo deste trabalho teológico – Definição de religião – Américo de Aguiar parte da etimologia de religião, explicando ao seu jeito o significado. Este conceito vem do latim religio, com o prefixo re-, que expressa repetição, acompanhado do verbo ligare, indicando fortalecer um vínculo. No seu entender, religião, materializada, é «um conjunto de actos externos por meio dos quais prestamos honra e obediência e damos glória à divindade». E «não há religião, mas sim as religiões».
No capítulo seguinte – Dificuldades – indicou alguns nomes de conhecidas divergências no [e contra o] Cristianismo. Começou por referir Martinho Lutero [1483 †1546], que foi um monge agostiniano e teólogo, sendo uma das figuras centrais da reforma protestante, no século XVI. A sua ruptura com a hierarquia começou em 31-10-1517, quando Lutero afixou as 95 teses sobre a venda das indulgências, na porta da igreja do castelo de Wittenberg.
Depois, salientou o culto da razão, que tentou eliminar a influência da Igreja Católica em França. De facto, entre outros acontecimentos para zombar da religião católica na Revolução Francesa, a 10-11-1793, houve uma grande festa da razão, organizada por Pierre-Gaspard Chaumette, procurador da Comuna de Paris, no interior da Catedral de Notre-Dame, em Paris, renomeada como templo da razão, sendoescolhida M.lle Maillard [1766-1818], da ópera de Paris, para a personificar.
Referiu, a seguir, Hippolyte Taine [1828-1893], que foi um pensador, crítico e historiador, doutorado na Sorbonne com Ensaios sobre as Fábulas de La Fontaine 1853], sendo um dos expoentes do positivismo francês. O método de Taine consiste em fazer história e compreender o ser humano com três factores determinantes: hereditariedade, meio ambiente e momento histórico.
Apresenta, ainda, o exemplo do «nosso sublime Junqueiro». Trata-se de Abílio Manuel Guerra Junqueiro [15-IX-1850, Ligares – Freixo de Espada à Cinta † 7-VII-1923, Lx.ª], conhecido escritor, poeta muito popular e político. Matriculou-se em Teologia, na Universidade de Coimbra, mas depois transferiu-se para Direito, em que se formou [1873]. São indicados o célebre livro A Velhice do Padre Eterno [1885] e O Caminho do Céu [Porto: Liv. Chardron, 1925]. Na extensa Nota preambular de João Grave, recolheu esta confidência sobre A Velhice do Padre Eterno: «[…] fôra, nesse livro, muito injusto com a Igreja que, se tinha nos seus Anais iniquidades e abusos, os resgatava com actos sublimes. E acrescentava com decisão: – Hoje, não o escreveria tal como se tornou conhecido e foi aclamado, justamente pelo que nele há de grosseiro e imperfeito. Inspirou-me, aos vinte e oito anos, o meu sentimento cristão sobre-excitado; […]» [p. XVI-XVII]. O belo livro O Caminho do Céu foi editado depois da morte de Junqueiro; e, por coincidência, em 1925, quando Américo de Aguiar foi admitido no Seminário de Coimbra, tendo-o lido. O exemplar à mão pertenceu a Mário Portocarrero Casimiro [em Lx.ª, 1935].
[continua]
Padre Manuel Mendes