
PÃO DE VIDA
Na morte do bom Padre Américo
Hoje é 16 de Julho, data marcante na Obra da Rua, pois nesse dia em 1956 aconteceu a páscoa de Pai Américo. É, assim, outra oportunidade para lembrarmos gratamente e reflectirmos sobre a sua partida inesperada para o Céu. De facto, em consequência de um acidente de automóvel sofrido a 14 de Julho de 1956, em S. Martinho do Campo – Valongo, dois dias depois, no Hospital Geral de Santo António – Porto, foi ao encontro da irmã morte, com 68 anos. A propósito deste acontecimento muito doloroso que abalou Portugal, enchendo-o de luto e lágrimas, é oportuno transcrever um notável artigo de Manuel Ribas, na Gazeta literária – órgão da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto [vol. IV, N.º 48-49, Agosto – Setembro de 1956, p. 113, 115]. Numa época em que os valores da vida humana e da família continuam questionados seriamente, em atenção aos sinais dos tempos, na Igreja, a Obra da Rua vai procurando encontrar o seu lugar de cuidado e promoção dos pobres – pela sua dignidade humana e social. Por isso, nestas colunas de vida, vale bem a pena revisitar este belo testemunho portuense sobre o carisma e a santidade do seu fundador – Padre Américo, com o próprio título do seu autor. Com a devida vénia, eis:
«A morte do bondoso Padre Américo, recentemente ocorrida, trouxe o luto a quantos sentem, na carne e no espírito, o poder extraordinário da caridade. Porque se tratava de um verdadeiro apóstolo, que se votara inteira e abnegadamente à causa dos pobres e das crianças abandonadas, a sua morte deixou a todos mergulhados na dor mais profunda e na angústia mais sentida.
É que não era a morte de um homem vulgar, de um indivíduo sem história, daqueles que todos os dias morrem e deixam pequena ou grande saudade no seu reduzido mundo, no mundo do seu ambiente familiar. O Padre Américo era parente de todos nós, nosso irmão mais querido, irmão das nossas ansiedades e dos nossos desesperos. Ele reflectia toda a gama de sentimentos nobres que vivem na alma de todos os homens. A insatisfação, o desprezo pelo lugar-comum, o amor profundo e de alma pelos que sofrem, a ternura pelas crianças que não tiveram nome nem infância, a caridade pelas mulheres que não tiveram casamento, o amor total, enfim, por toda a sorte de sofrimento – o físico, o moral e o espiritual – todos estes sentimentos se consubstanciaram nesse homem singular, único, extraordinário que, além do Padre Américo, foi o Pai Américo. Se todos choraram – e porque não haviam de chorar? Que mal fica àqueles que assim exprimiam a sua dor, a dor que retalha a carne e fere a alma? – porque não sentir, como eles, este sentido de catástrofe moral que representou a morte do Homem, do Apóstolo e do Santo que Deus achou propício chamar à Sua presença?
O Padre Américo foi um puro vicentino e realizou integralmente os mais belos mandamentos do Evangelho dando abrigo às crianças abandonadas, dando pão aos que têm fome, vestindo os nus e dando casa aos que a não tinham. Toda a sua obra é uma luz forte de caridade, é uma labareda de fé e de graça, que, como os grandes incêndios, não se extingue, não se apaga. A sua obra ultrapassa a craveira da vulgaridade e situa-se para lá do que é simplesmente humano. O Padre Américo, na sua palavra vibrante, avassaladora, pura, tinha a chama da própria palavra divina. Não se lhe podia resistir, pois ela era uma mensagem de fogo que queimava os corações mais duros e impelia as almas bem formadas para a caridade verdadeira, sem aparências enganadoras ou roupagens de sentimento postiço. Rendiam-se-lhe os corações mais duros, as almas menos propensas ao bem. O grande sacerdote era brandura, mas também sabia escalpelizar aqueles que, com o poder do seu oiro, não realizavam sequer uma migalha de caridade. Sentiam nas suas palavras a acusação forte, vibrante e sentida ao seu egoísmo, à sordidez dos seus sentimentos. A própria vergonha subia-lhes à face, pois, na palavra deste homem bom o próprio anátema parecia vir de Deus.
Parece que o vejo ainda subir as escadas do Governo Civil do Porto, advogado dos farrapos da rua, a pedir e a solicitar as terras de Paço de Sousa para nelas erguer a cidade dos rapazes. Ninguém lhe resistia, pois ele, tantas vezes dando mostras da sua amargura, defendia com desassombro e com coragem os rapazes da rua, dizendo que era obrigação de todos amparar e guiar aqueles pequeninos que um dia foram lançados ao abandono. E respondia a tantos: «Não há filhos ilegítimos; há, sim, pais ilegítimos!...».
E mercê da sua persistência heróica, do seu jornadear de amor, das suas palavras fluentes e desassombradas, daquelas terras ao lado do Mosteiro de Paço de Sousa, surgiu um dia, linda, acolhedora, feliz, a cidade dos rapazes, a primeira batalha ganha pelo grande lutador de Cristo. E nela, os garotos da rua, vadios, órfãos, toda a sorte de desgraçados e abandonados – «o esterco das vielas do Porto», como ele pitorescamente lhes chamava – começaram a viver outra vida, saudável e reabilitadora. E bateu a todas as portas, de ricos e de pobres, pedindo para os seus «filhos», pois quase todos não tinham pai.
A cidade dos rapazes, que começara em Miranda do Corvo e se estendera a Paço de Sousa, multiplicou-se pelas terras portuguesas, no grito triunfante de uma juventude até ali infeliz e escorraçada.
O Padre Américo não parou. Lançou outra ideia – a do «Património dos Pobres» – pois havia famílias cristãs que vegetavam em mansardas sem ar nem luz nem forma, numa promiscuidade que os próprios animais não consentem. Lançou o seu grito de guerra contra tão desumana forma de viver. E nas cidades e aldeias de Portugal iniciou-se outra revolução de amor. Ergueram-se pequenas casas asseadas, limpas e tipicamente portuguesas, que começaram a ser oferecidas, sem qualquer encargo, às famílias mais pobres e mais necessitadas.
São hoje centenas de casas, que mostram, por esse País fora, o milagre da caridade operado pelo bom Padre Américo.
Mas a sua obra não parára, ainda. Os doentes, os incuráveis, sobretudo, não tinham onde acolher-se. Viviam no desespero e no abandono, como seres que a sociedade classifica de inúteis. O Padre Américo põe-se, também, ao seu serviço. A sua mensagem de amor e de solidariedade não tem fim. E, então, o bom Padre Américo faz erguer, próximo de Paredes, o «Calvário», hospital e albergue, com as suas casinhas familiares para habitação dos incuráveis e dos seus parentes mais próximos. No primeiro hão-de entrar aqueles que não têm vaga nos hospitais e no segundo, os que não tendo cura, terão, ao menos, paz e conforto até ao último alento de vida.
As Casas do Gaiato, o Património dos Pobres e o «Calvário» – magníficos poemas de amor e de caridade – são, pois, monumentos vivos da sua fé e da sua tenacidade. Ilumina-os um belo clarão de apostolado, que não tem par no nosso tempo. E esse Sol que aquece a sua obra não se extinguirá, como não se extinguirá a memória da sua figura extraordinária, que há-de resistir ao tempo, porque como o próprio Verbo divino, tem o sentido da eternidade.».
Padre Manuel Mendes