PÃO DE VIDA

Pai Américo e D. Domitilla de Carvalho

Quando há mais de meia-dúzia de anos, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, localizámos três cartas do Padre Américo ao Dr. António de Oliveira Salazar [vd. AOS/CP-009, cx. 866, f. 201-215], tendo depois iniciado a sua publicação, em primeira mão [vd. O Gaiato, N.º 1956, 2 Mar. 2019, p.4], também tivemos notícia de outra carta da autoria de D. Domitilla de Carvalho, de Maio de 1952, antes de uma viagem de Pai Américo a África, com uma referência a ter em devida conta. Para memória futura, iremos transcrever a parte final dessa missiva. Sem anacronismo e considerando meio século de regime democrático, esta pequena informação pode interessar como simples achega documental sobre a relação entre a Obra da Rua e o Estado português, com as Províncias Ultramarinas, nessa época. Sobre o Dr. António Salazar, é de recuar a 28 de Maio de 1926, quando o General Gomes da Costa chefiou uma revolta militar em Braga. O regime político instaurado, designado de Estado Novo, veio depois a ser dirigido autocraticamente, sendo que foi Presidente do Conselho de Ministros de Portugal, de 1932 a 1968.

Vale bem a pena recordar alguns traços de enquadramento, que nos foram também recordados vivamente pelo nosso Pai. De facto, entre Julho e Outubro de 1952, Padre Amérealizou uma viagem a África com Júlio Mendes, conforme foi anunciado numa coluna sob o título `Eu vou à África`: «Alguns jornais já o disseram e agora digo eu. Vou sim senhor. […] A razão da viagem é simplesmente esta: Como nós temos já alguns rapazes em África e muitos mais hão-de ir, pretende-se visitar cada um dos que já foram e estudar ao mesmo tempo a possibilidade de conseguir uma residência para os deles que estamos preparando aqui. […]» [O Gaiato, N.º 215, 24 Maio 1952, p. 3]. Mais adiante, deu notícias numa coluna 'Eu vou ò Ultramar': «Conto que seja no próximo mês de Julho, porém do nome do paquete e data da partida, nada posso dizer, por enquanto. Não sei.

Que vou ali fazer? Também não sei. Só sei que me custa muito ir! Eu nunca sei para onde e como vou. Há muito anos que ando assim perdido. Só depois de chegar é que começo a dar fé e a ligar as coisas e a compreender…! Em África vai ser assim. Por agora só tenho para dizer aos meus leitores que a deslocação me é dolorosa.

Tenciono, melhor diria, tencionamos por que o Júlio Mendes deve acompanhar-me. Tencionamos, digo, desembarcar em Luanda e ver o que nos for possível na Província de Angola. Há trinta anos que por ali não passo. Segundo as cartas do Amadeu ao seu irmão Júlio, muito se tem feito em relação ao que estava. E muito mais há a fazer em relação ao futuro. Sim. Havemos de observar como e quanto nos for possível. O Gaiato há-de dizer, assim como foi do Brasil.

Depois de duas semanas por aquela Província, tencionamos ir ao Congo Belga e dali voar para a Rodésia. Não faço ideia de tempo e de distância. Não sei de acolhimentos nem de facilidades. Eu vou perdido. Sei que me custa ir e isso basta para realizar totalmente o meu programa! Tenho um amigo na Beira que prometeu ir buscar-me à capital da Rodésia; mas se por ventura ele não puder, nós temos o comboio. Uma vez na Beira estamos em casa e mais ainda quando chegarmos ao Luabo. Ali se encontra o irmão do Júlio. É mesmo para o abraçar que Júlio foi o escolhido. Ali se encontra o António Teles. Ali tenho amigos de outros tempos que ainda são amigos. Sim no Luabo estamos em casa habitada por filhos e por amigos. O Chinde, aonde também quero ir, essa terra que seria a minha casa, por ter ali consumido todos os meus anos verdes. Mas não é. Não é, porque está vazia; segundo me consta, o mar comeu o Chinde do meu tempo e dos que então existiam, não há um que chame pelo meu nome! É assim. Todos nós caminhamos, não para a morte, como muitos dizem, mas sim para uma outra vida: a vida eterna!

Conforme o tempo e a disposição, é possível ir e ver outras terras da Província de Moçambique; mas eu não sei. Eu não faço programa. Eu sou um perdido sem vontade própria. Depois direi.» [O Gaiato, N.º 216, 7 Junho 1952, p. 2].

Então, da referida missiva da Dra. Domitilla de Carvalho ao Senhor Presidente do Conselho, datada de 23-5-1952, recortámos o texto em que é mencionado o Padre Américo — 'o grande amigo dos pobres […] que parte brevemente para Luanda', e na qual pediu ao Dr. Salazar que o recebesse. Eis:

«[…] No momento estava presente o homem que todo o País conhece, o grande amigo dos pobres, que tantas maravilhas já realizou em seu proveito, aquele que tem livrado centenas de crianças das cadeias, da morte, da miséria material e moral pior do que a morte — o simples, o humilde Padre Américo. Vai partir brevemente para Luanda, onde continuará a pregar o Evangelho, realizando o seu Apostolado de amor. Tinha a ambição de falar com Vossa Excelência antes da partida. Pode conceder essa grande felicidade àquele que tem tornado felizes tantos desgraçados?

Por Deus lhe peço: no dia e hora, que Vossa Excelência determinar, receba-o. Eu o prevenirei pelo telefone, alegrando-me antecipadamente com a alegria que ele vai ter.

Domitilla de Carvalho» [vd. ANTT: Arquivo Oliveira Salazar — AOS/CP-051, cx. 908, f. 248-249].

É notória a proximidade entre Pai Américo e a Dra. Domitilla de Carvalho, que tinha facilidade em chegar ao Presidente do Conselho. Mas, será que este encontro aconteceu, antes da viagem de Pai Américo a África?… Sobre este assunto, da acção de Pai Américo como Procurador dos Pobres, em Lisboa, fica este seu desabafo: «Gastei os dias da semana na capital, a pisar tapeçarias dos ministérios, em cólicas! Uns ministros dão a mão, outros deixam-me cair no chão, consoante seus critérios que a gente aceita e respeita. O que não vier duns, virá doutros. Acredito na Obra da Rua. Sei a quem sirvo.» [Pão dos Pobres, vol. IV, Paço de Sousa: Ed. Casa do Gaiato, p. 157].

[Continua]

Padre Manuel Mendes