
PÃO DE VIDA
Dos primórdios da Obra da Rua
Como intróito, dos Novos Guias de Portugal, em que vem também descrita a vila de Miranda do Corvo – que recebeu Foral de D. Afonso Henriques em 1136, terra de agricultores e oleiros – eis este belo recorte:
«Para a visita a Miranda ter um cunho diferente, um carácter mais humano, deve incluir como ponto obrigatório uma das obras sociais mais meritórias deste país: a Casa do Gaiato. Situa-se nos arredores da vila e tem o interesse histórico de ser a primeira Casa da Obra da Rua, fundada pelo Padre Américo em 1940. Nesta pequena aldeia de rapazes, toda cheia de amor e carinho para com os infelizes, onde qualquer visitante é recebido com simpatia extrema, torna-se fácil, afinal, acreditar no homem e nas enormes potencialidades morais que tem dentro de si.» [Nelson Correia Borges – Coimbra e Região, Lx.ª: Ed. Presença, 1987, p. 204].
Com o desenrolar da experiência pioneira das Colónias de Férias [1935-1939], na montanha, verificou-se que o Padre Américo foi sonhando adquirir uma casa própria com quinta – para repouso, cura e formação de rapazes pobres e abandonados. Neste sentido, escreveu: «As Colónias de Campo do Garoto da Baixa era[m] uma obra incompleta e eu tinha medo que o povo lhe chamasse, como às capelas da Batalha, imperfeita. Eu mesmo sentia que algo lhe faltava.» [Obra da Rua, Coimbra, 1942, p. 39].
Assim, foi pondo a ideia em marcha, como uma bola de neve, e anunciou: «Acabaram-se as horas angustiosas de não poder remediar o garoto doente da mansarda, e de dizer que não, nas colónias, ao rapaz que me pedia para ficar mais tempo. Tinha uma casa para eles! Podia tomar agora o pequenino doente nos meus braços, retirá-lo do casebre onde tudo falta, e deitá-lo eu mesmo na sua cama, onde há sol e abundância, regalado.» [idem, p. 43].
E continuou assim: «A compra da casa que havia de ser do Gaiato, foi feita sem dinheiro. Tinham-me informado de uma casa de campo à venda, sita a dois passos da vila de Miranda do Corvo, adequada ao meu fim. O meu informador era o próprio vendedor: - Venha, que há-de gostar. Fomos examinar casa e local, por uma tarde de verão. Gostei e tratei por quarenta mil escudos. Isto foi no mês de Julho, de trinta e nove. […].
Os construtores de obras assim não têm medo de dinheiro; eles sabem que Jesus o mandou retirar de dentro de um peixe, para saldar contas com César. Onde quer que seja e onde menos se espera, encontra a gente o que precisa. Assinei a escritura, dei metade à conta e no fim de poucas semanas tinha a dívida saldada – a César o que é de César.
A Casa do Gaiato abriu as portas aos três primeiros garotos na primeira semana de Janeiro de mil novecentos e quarenta, e consta do livro de registos terem feitos ali cura de repouso, até ao fim do ano, quarenta e dois deles.» [idem, p. 44-45].
Da compra da Casa e da Quinta de S. Braz, já demos notícia [vd. O Gaiato, N.º 2029, 18 Dez. 2021, p. 1], conforme escritura no arquivo da Cúria Diocesana de Coimbra. Isto foi em 3 de Outubro de 1939. Como a obra nascente ainda não tinha personalidade jurídica, na Diocese de Coimbra, o Padre Américo efectuou a compra como procurador da Sociedade Instrutiva Ozanam.
E, ao longo do ano 1942, foi tratando de passar o património adquirido para o nome da Casa de Repouso do Gaiato Pobre e ainda comprar mais alguns prédios para as diversas necessidades. À mão, temos dois documentos originais e inéditos, em papel azul: um requerimento e uma Certidão. Para memória futura, transcrevemos infra o dito pedido, encimado pelo imposto de selo – 2$50, com assinaturas do próprio Padre Américo!, no final da fl. 51 v.º, e rubricado pelo Chefe Eduardo Luiz Loup, no canto superior direito da fl. 51. Eis:
«Excelentíssimo Senhor Secretário das Finanças de Miranda do Corvo
A Casa de Repouso do Gaiato Pobre, sita no lugar dos Bujos, desta freguesia e aprovada por sua Excelência o Senhor Ministro do Interior como obra de Assistência Pública, comprou à Sociedade Instrutiva Ozanam:
1.º) – Casas de sobrado e lojas, telheiro e terras de cultura, no lugar dos Bujos, freguesia de Miranda do Corvo, a confrontar a Nascente com Manuel António, a Poente com herdeiros de Joaquim Rodrigues da Costa Gonçalves, a Sul com Maria José e a Norte com vários; descrito na Conservatória sob o N.º 18.017 e na matriz urbana sob o artigo 451 e na rústica sob os artigos 19.124 e 19.125.
2.º) – Um terreno com pinhal na Cabeça Alta com o N.º 20.755 na Conservatória e 29.031 na matriz.
3.º) – Terreno com pinhal, na Cabecinha, sob os N.os 20756 e 20757 ambos inscritos na matriz sob a metade do artigo 28.745, embora sejam dois prédios distintos.
[fl.51v.º] 4.º) – Terreno com pinhal no Vale Queiroz sob o N.º 25.973 na Conservatória e na matriz sob os N.os 28.916 e 28.933.
5.º) – Terreno inculto, no lugar dos Bujos, com o N.º 25.975 na Conservatória e na matriz o N.º 29.024.
6.º) – Terreno com pinhal sito no Curtinho sob o N.º 25.976 na Conservatória e na matriz 28.920.
7.º) – Terreno com pinhal no lugar de Seixozo com o N.º 29.333 na matriz; não está inscrito na Conservatória.
8.º) Uma terra de cultura no sítio do Ribeirinho, sob o N.º 28.928 na Conservatória e 19.122 na matriz.
Sua Excelência o Senhor Ministro das Finanças exentou [sic] de siza e mais impostos devidos à Fazenda Nacional, todos os prédios acima citados, do que vem requerer a V. Ex.cia uma certidão.
E.R.M. [espera resposta mercê]
Miranda do Corvo, 27 de Fevereiro de 1942.
Pela Casa de Repouso do Gaiato Pobre.
P.e Américo Monteiro d'Aguiar!
Em tempo: O prédio referido em primeiro lugar está também inscrito na Matriz Rústica de Miranda do Corvo sob os art. 19.118, 19.119, 19.120, 19.121, 19.126.
P.e Américo Monteiro d'Aguiar!».
Na margem esquerda, tem um carimbo, preenchido: «Secção de Finanças do Concelho de Miranda do Corvo/Registado sob o N.º474, L.º.10, fls.139/Entrada em 27/2/1942/P'lo Chefe [ilegível]. Anexa, vem a referida Certidão, cuja transcrição fica para a próxima, mais a de outros documentos referentes a património, do punho do Padre Américo.
Padre Manuel Mendes