PÃO DE VIDA

Gratidão a Ruy Cinatti

Quem se lembra de ter estudado, e decorado, entre as matérias do Ensino Primário, as antigas Províncias Ultramarinas? Neste âmbito, a guerra colonial e a descolonização foram processos extremamente dolorosos para a nação portuguesa e para os outros povos, cujos desenvolvimentos e desfechos poderiam ter sido diferentes, para melhor, pois o que foi acontecendo deixou muitas marcas negativas para inúmeras pessoas. Os interesses estratégicos e económicos de vários países foram (e são) demasiado fortes… Estes assuntos muito importantes, na História de Portugal no século XX, têm incontáveis panos e diversas perspectivas, desde miríades de testemunhos pessoais à quantidade enormíssima de documentação, nos arquivos e bibliotecas, que tem permitido produzir ao longo dos tempos muitas e plurais abordagens. A presença portuguesa encontra-se por todo o mundo.

Na biografia de Padre Américo e na história da Obra da Rua, também há muitas páginas escritas e documentação relacionadas com o Ultramar português; e depois da mudança de regime, em 1974. Recordamos que Américo Monteiro de Aguiar viveu e trabalhou em Moçambique, cerca de 16 anos [1906-1923]. Escutámos bem a alegria de meu Pai Júlio ao contar a sua viagem a África, em 1952, como companheiro de Padre Américo. Em 1963, foram fundadas em Angola as Casas do Gaiato de Malanje e de Benguela; que foram nacionalizadas em 1975 e restituídas em 1992. Em 1967, foi fundada a Casa do Gaiato de Lourenço Marques. O regresso da Obra da Rua a Moçambique deu-se em 1991; embora este ramo continue desligado.

A propósito da recente [9-11 de Setembro] visita do Papa Francisco a Timor-Leste [Timor Lorosa'e, em tétum], País de língua portuguesa, é ocasião para deixar um breve e justíssimo tributo em memória de Ruy Cinatti, pela sua ligação especial à Obra da Rua. Assim, num ofício de 10 de Dezembro de 1986 [arquivado na Casa do Gaiato de Paço de Sousa], de Padre José Telmo Ferraz, responsável da Obra da Rua, diz assim: «A fim de se concretizar a vontade do testador — Eng.º Ruy Cinatti Vaz Monteiro Gomes — no testamento a favor da Obra do Padre Américo, delego, para representar a Obra em tudo o que seja necessário, no Sr. Padre Luís Augusto Carretas Barata, director da Casa do Gaiato de Santo Antão do Tojal — Loures — Lisboa.». Esta missiva vem na sequência do Testamento de Ruy Cinatti, do qual extraímos apenas estas linhas esclarecedoras: «No dia vinte e cinco de Setembro de mil novecentos e oitenta e seis, em Lisboa, no Hospital de Santa Marta […] o senhor Ruy Cinati Vaz Monteiro Gomes, solteiro, maior, natural da Grã-Bretanha, de nacionalidade portuguesa, filho de António Vaz Monteiro Gomes e de Hermínia Celeste Cinati, […] Institui única e universal herdeira da sua herança a 'Obra do Padre Américo', mas somente e em conjunto as secções integradas nessa 'Obra', designadas por 'Casas do Gaiato' e 'Calvário'» [fonte: 8.º Cartório Notarial de Lisboa, 1986, liv.º 105 — T, fls. 12-13].

Chamamos aqui esta vontade testamentária, para que não restem dúvidas sobre esta questão. Estas linhas demonstram a sua admiração pelo Padre Américo e pela Obra da Rua. Neste tema, também escutámos o testemunho pessoal do bom amigo Padre Luiz [18-V-1926 †13-IV-2003], engenheiro agrónomo, que foi amigo de Ruy Cinatti, reconhecido escritor católico. Ruy Cinatti — como agrónomo, etnólogo, antropólogo, investigador e poeta — foi um apaixonado por Timor.

Nesta memória muito grata, é de fazer uma breve nota biográfica. Assim, Ruy Cinatti nasceu em Londres, a 8 de Março de 1915, sendo filho de António Vaz Monteiro Gomes e de Hermínia Celeste Cinatti. Ficou órfão de mãe, em 2 de Abril de 1917, sendo entregue aos cuidados de Demétrio Cinatti, avô materno; e, depois da morte deste, a Rui Luís Gomes e Amélia Augusta Vaz Monteiro, avós paternos. Ruy Cinatti viveu com seu pai entre 1925 e 1934. Na sua educação escolar, depois de ter estudado em alguns Colégios, destacamos o Instituto Militar dos Pupilos do Exército, o Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, e a University of Oxford, onde se doutorou em Antropologia. Foi membro da Sociedade de S. Vicente de Paulo e da Juventude Universitária Católica [vd. Ala, n.º 2, Out.º 1941, p. 3]. Exerceu diversos cargos, como agrónomo, na sua carreira profissional. Foi autor de uma extensa obra literária e científica, em que se destacou a poesia e Timor, território português onde viveu [1946-47 e 1951-55]. Ruy Cinatti faleceu a 12 de Outubro de 1986, com 71 anos, em Lisboa, vítima de um cancro pulmonar. Foi sepultado no cemitério dos ingleses, em Lisboa. O espólio literário e documental de Ruy Cinatti foi deixado à Obra do Padre Américo, conforme está comprovado. Depois, a documentação foi retirada da Casa do Gaiato [sic] de Lisboa, da Obra da Rua, pelo Padre Peter Stilwell [autor d'A condição humana em Ruy Cinatti, Lx.ª, 1995], que fez a sua entrega à Biblioteca Universitária João Paulo II, da Universidade Católica Portuguesa, onde o espólio teve tratamento arquivístico [Fundo RCVMG 92 cx. e 47 mç.].

De duas publicações emblemáticas do pensamento de Ruy Cinatti, ao alcance dos nossos olhos, vamos transcrever algumas linhas que dizem muito do cerne da sua vida. Começamos por: Não somos deste mundo [Lisboa: Cadernos de Poesia, 1941]. O exemplar à mão tem um autógrafo manuscrito: Para Luiz de Montalvor, poeta e artista, com o muito apreço e simpatia de Ruy Cinatti, Nov. 1941. De seu nome Luís Filipe de Saldanha da Gama da Silva Ramos foi um poeta e editor português [31.I.1891 S. Vicente, Cabo Verde †2.III.1947 Lisboa]. Marcado pela orfandade materna aos dois anos, este seu primeiro livro de poesia é dedicado À memória de minha mãe, cujas palavras são magníficas: «E ela está aqui, na minha frente, no retrato que tirei de cima da estante para melhor a ver. Eu olho para ela, para os seus lindos olhos, mas tal a sua quietação que se não perturba e continua a olhar em frente… E enquanto olho para ela e me sinto pouco a pouco trespassar de não sei que ternura tão cheia de amor, vou pensando, vou pensando nela e em tudo que a rodeia e me pertence… […] Contigo me levaste, minha Mãe! Nós não somos deste mundo, mas é no mundo que eu vivo. Em cada pensamento, em cada acção, os teus desígnios serão revelados, até onde o sonho me levar. O meu coração estremece ao teu apelo. Guarda-o como se fosse teu, e banha-me de lágrimas para que eu possa, um dia, estar a teu lado, para sempre.» [p. XIII, XXI].

No opúsculo Timor — Amor [Lisboa: Edição d'Autor, 1974], Ruy Cinatti manifestou o que temia sobre um território belo que o apaixonou; e veio a acontecer: a invasão de Jacarta, em 7 de Dezembro de 1975. Esta Colónia portuguesa acabou por se tornar um Estado soberano em 20 de Maio de 2002, depois de um processo muito difícil e sangrento. O exemplar à mão tem esta dedicatória manuscrita: Para Manuel Ferreira da Costa, com o velho abraço do Ruy Cinatti, Fev. 75. Foi um rude golpe, de que não mais se recuperou, como lamenta neste poema: «Premonição/ Hei-de chorar as praias mansas de Tíbar e Díli, as manhãs, mesas de bruma, de Lautém, os horizontes transmarinhos de Dáre, as planícies agrícolas de Same e de Suai. Ao Tat-Mai-Lau, o Avô dos Montes, hei-de subir — e descer à chã verdade que todos negaceiam, a verdade — minto! — que já tardam os que por Timor não se esqueceram, pecando por atraso, malícia, tibieza. Timor e Timorenses isolados!» [p.2]. Porém, alimentava a esperança, como diz a frase inscrita na contra-capa: «Dantes a casa achava-se em ruína; mas fez-se outra nova. Avós nossos, venham todos ver como ela está agora! — De um rito de consagração timorense». Na verdade, Ruy Cinatti deu o melhor da sua vida ao desenvolvimento de Timor, que amou como sua pátria!

No dia 11 de Setembro, muito tocado pela alegria dos mais novos, o Papa Francisco disse em Díli: Nunca me vou esquecer do vosso sorriso! E, no dia 13, no voo de regresso a Roma, afirmou aos jornalistas: Digo-vos uma coisa: fiquei apaixonado por Timor-Leste!

Deste cantinho a mais de 14 mil quilómetros de Timor-Leste, é de dizer ainda que, em Setembro de 2023, o Lar do Gaiato de Coimbra, ligado à Casa do Gaiato de Miranda do Corvo, acolheu alguns estudantes do ensino superior, originários de Timor-Leste, como um gesto simples de homenagem muito grata ao Eng.º Ruy Cinatti, grande amigo de Timor-Leste e também da Obra do Padre Américo!].

Padre Manuel Mendes