
PÃO DE VIDA
Do Padre Abel Varzim
No 122.º aniversário do nascimento do Padre Abel Varzim e 60 anos depois do seu passamento, aproveitamos para recordar uma figura eclesial emblemática na defesa dos pobres em Portugal, no século XX, que procurou pôr em prática a Doutrina Social da Igreja. Não deve, pois, ser esquecida a sua memória de profeta, lutador pela promoção humana e justiça social, com «uma alma escancarada ao mundo» [António Alçada Baptista – A Capital, 20.8.1974]. De notar que o seu espólio documental foi preservado e digitalizado [Forum Abel Varzim].
Assim, no dia 29 de Abril de 1902, em Cristelo (Barcelos), nasceu Abel Varzim da Cunha e Silva, filho de Adelino da Costa e Silva e Adelaide Varzim da Cunha e Silva. Faleceu em 20 de Agosto de 1964, com 62 anos, no Porto, onde tinha ido prestar assistência à Casa de Recuperação, na Rua D. João IV. De relance, estudou nos Seminários de Braga e foi ordenado Presbítero em 29 de Junho de 1925, pelo Arcebispo Primaz de Braga, D. Manuel Vieira de Matos. Em 8 de Agosto desse ano, partiu a sua mãe, pelo que sofreu um forte abalo. O seu percurso biográfico, desde o berço ao ocaso – como formador no Seminário de Serpa, Doutoramento em Lovaina (1934), Acção Católica, Pároco da Encarnação (Lisboa), etc. – foi traçado na obra Abel Varzim – apóstolo português da justiça social (Lisboa, 1990), por Domingos Rodrigues, que escreveu em síntese: «Abel Varzim foi um Homem de Deus, um Padre da Igreja e um Irmão de todos os homens com predilecção especial pelos mais necessitados. É dele próprio a última explicação da sua vida: ´O crucifixo é a minha força. Cristo, se se tivesse calado, se aceitasse tudo quanto queriam, se não condenasse os erros também não seria crucificado´ (Diário, 16 de Abril de 1948)» [p. 253-254].
Nesta grata lembrança eclesial e como singela homenagem, avivamos a descrição de uma visita de Pai Américo a uma Obra para mulheres marginalizadas, a que o Padre Abel Varzim deu corpo e alma. Neste sentido, respigámos um artigo cheio de significado, que demonstra a sua admiração pela acção social deste defensor dos frágeis. Na verdade, entre outros cuidados pastorais, em Lisboa, entregou-se a um serviço estuante e doloroso pela promoção da pessoa humana, nomeadamente em prol das mulheres na lama das ruas. Sobre esta actividade muito difícil, sendo perseguido, em 8 de Janeiro de 1963, escreveu: «os meus maiores sofrimentos não vieram da Acção Católica. A Obra das Raparigas, essa sim, ´essa é que me fez beber o cálice da amargura´ […]» [p. 220]. Do relato dessa visita ao Centro de recuperação das raparigas da prostituição, na Quinta do Bosque, na Amadora, é oportuno transcrever um testemunho eloquente, que manifesta um conhecimento directo de uma realização meritória. Eis:
«[…] O pároco da Encarnação é o Dr. Abel Varzim, um mártir dos nossos tempos, ignorado. Acontece que a sua paróquia abrange o Bairro Alto – Açougue de Lisboa… Algumas paroquianas começam a ir à igreja, a medo. Uma, antes morrer, quer falar ao senhor Prior. Falou. Morreu. Teve funeral. As colegas velam toda a noite, pedem sufrágios e tudo são fitas brancas e flores. Ela morreu no seio da Santa Madre Igreja. Atrás da morta, vêm outras companheiras e começa a dar-se a aproximação. Implanta-se na paroquial o culto de Santa Maria Goreti, com um altar especial, à mão direita de quem entra na igreja. Mais aproximação. Melhor entendimento. Algumas põem ao Padre Abel o caso da sua libertação. Ele escuta, aflige-se, trabalha. Começa o seu martírio a render. Àquelas mesmas que lhe vêm pedir auxílio e opinião, ele pede auxílio e opinião. Depressa compreendeu que ninguém pode redimir sem a colaboração do redimido. Nem Cristo, e mais Ele é Deus. Alugar casa para cada caso, tornava-se mui dispendioso, de sorte que, as paroquianas mai-lo Prior, optaram por uma casa longe de Lisboa e vida humana. Assim se fez. Jardim, horta, vida em família. Porta aberta. Uma delas fugira ontem. Obra delas, por elas, para elas. Está certo. Não é defeito; é antes uma qualidade da Obra. A que fugiu pelo seu pé, regressou da mesma sorte. A orientadora da comunidade, uma senhora estranha, já se vê, foi testemunha, sim, mas não interviu [interveio]. Muitas outras hão-de necessariamente fugir. A obra tem tanto de difícil como de delicada. Mas não tenhamos medo. Foi o próprio Deus quem deu o querer ao senhor Padre Abel Varzim. Com este título ele vai reconhecer que as dificuldades da obra são justamente a sua alma.
Estivemos na quinta. Padre Adriano mais eu olhámos em redor. Jardim, horta, largueza, muitas dependências na casa, tudo pobre e bem arrumado. Estava a governante e cinco delapidadas: as fundadoras. Uma delas tem ao colo uma criança de ontem. Aquele mesmo indivíduo do crime, hoje, mudado, vem ali procurar e quer fazer sua a que dantes não era de ninguém – porque de todos. Trabalha-se ali em roupas de vestir, enxoval para um casamento, outros serviços domésticos. Acende-se o fogo, faz-se o jantar, cuida-se da arrumação da casa. Tudo isto são receitas suaves e dolorosas, ignoradas, para maior desgraça, de quem as suporta. Atrás destas cinco, mais cinco. Com o andar dos tempos, mais cinco. Padre Abel Varzim descobriu que a qualidade vale mais do que a quantidade. Por agora não vale a pena insistir; cada uma é que há-de dar o sinal. Dar pela falta de algo que lhe falta – o conhecimento de Deus. E depois é deixar a cada uma o seu problema interior. Elas que falem.
Regressamos a casa naquela formosa tarde dum Verão que parece Outono. Padre Adriano põe o carro a meia marcha, para termos mais tempo de conversar. Aquela Obra incipiente tem nervos de gigante, por ter nascido e ser da Igreja. O repugnante pode tornar-se em amável. O vício em virtude. A lama em luz. A Deus nada é impossível. Por outro lado respeita-se humildemente a liberdade das que quiserem ser da Obra. Elas podem-se determinar. A porta aberta é afinal de contas a maior segurança. Que o diga a que fugiu e tornou. Depois vem o trabalho. Sem este é impossível a regeneração. Ausência total de criadas, nem na quinta, nem na horta, nem no jardim. Dentro de casa, isso nem se fala. Como íamos devagarinho e o Tojal demorava, falámos dos asilos. O antigo asilo que pretende sobreviver aos lares de família e continua com normas dispendiosas e nocivas. Em uma cidade, a superiora dum asilo fez-nos queixa do sistema de criadagem que ali viera encontrar: Aqui é tudo feito por criadas. Isso significa que no fim do tempo, à saída das meninas, aumenta a população do Bairro Alto… Tudo isto, que já não é pequeno mal, sofre um aumento de um outro maior: Sabemos e não dizemos.» ['Uma visita', O Gaiato, N.º 276, 25 Setembro 1954, p. 2.].
Conforme se comprova, esta miséria humana foi encarada de frente, com palavras e obras, pelo Padre Abel Varzim [vd. Procissão dos passos – uma vivência no Bairro Alto, 2014]. Acontece que esta matéria delicada também foi uma preocupação de Américo de Aguiar, desde seminarista em Coimbra, de acordo com uma carta para o seu amigo Simão Neves, de 30 de Setembro 1927, redigida depois de uma viagem a Lisboa. Recortámos apenas estas palavras fortes: «Amo-as, eu, as prostitutas, porque sei que muito sofrem!! E amam-nas, da mesma forma e pela mesma razão, todos os que conhecem e sentem o valor metafísico da humanidade.» [O Gaiato, N.º 446, 15 Abril 1961, p. 3.].
O aprofundamento da vida e obra do Padre Abel Varzim [1902 †1964], figura eclesial incontornável, no seu tempo, conduz-nos, sem dúvidas, à afirmação certeira do Padre Américo: Padre Abel Varzim – um mártir dos nossos tempos. O seu exemplo, de radicalidade e serviço, certamente ajudará os cristãos e as pessoas de boa vontade que, nas veredas e asperezas dos caminhos, se dedicam e cuidam das pessoas mais débeis e nas margens sociais. De uma bela Oração [29/4/57], não resistimos a citar este cibinho:
Que fazes aí, ó Cristo antigo,
Pregado nessa Cruz eternamente?
Liberta a tua mão omnipotente,
Desprega esses teus pés! E vem comigo…
Padre Manuel Mendes