PÃO DE VIDA

Pai Américo — poeta ou mártir?

Há algum tempo, recebemos um telefonema de Joana Leitão de Barros, neta de José Júlio Marques Leitão de Barros [22-X-1896 †29-VII-1967], co-autora com Ana Mantero, também neta do livro Leitão de Barros: A biografia roubada [Ed. Bizâncio, 2019]. Recorreram a fontes documentais inéditas do espólio do seu avô, que foi doado à Fundação Gulbenkian. Foi casado com Helena, filha do aguarelista Alfredo Roque Gameiro. Artista multifacetado, de muitos ofícios, como cineasta e jornalista, foi um personagem relevante no panorama cultural do seu tempo. A sua última tribuna foi o jornal Diário de Notícias, onde escreveu, de 1953 a 1967, ao Domingo, sem assinatura, a crónica semanal 'Os corvos', sob os símbolos da caravela e dos corvos, com temas diversos, que tiveram repercussão em vários estratos sociais. Foram organizados textos desta coluna, em dois volumes [Ed. Notícias, 1959 e 1961], ilustrados por João Abel Manta.

Depois da morte de Pai Américo, em 16 de Julho de 1956, Leitão de Barros escreveu um artigo interessante, que vale a pena transcrever nesta coluna, pois é um retrato original de um grande português e figura incontornável da Igreja em Portugal, no século XX. Aqui vai o tal imperdível 'corvo':

«Alguns encontram ainda tempo, dentro das suas vidas, para dar tempo às vidas dos outros. E conseguem olhos para debruçar-se sobre a palidez dum mau, a lágrima dum vencido, a dor duma invalidez sem remédio. O Padre Américo, cujo ataúde as crianças arrombaram para beijar-lhe as mãos, era desses homens que nasceram com o dom de noivar eternamente com a miséria, afagando-a, chamando-a a si. Dizem que era rude, como se a rudeza não fosse a máscara corrente da ternura.

Pastoreava as almas com o cajado sadio de uma fé onde havia o sacrifício do missionário e a tenacidade heróica e alegre do mártir. Podia não ter sido padre, — teria sido sempre para muitos a imagem popular do santo vivo. E há lá espectáculo mais belo do que ver correr, por ele, lágrimas de milhares de rostos juvenis, estremecerem minúsculos corações, que o instinto puro animou nessa hora em que lhe rasgaram o chumbo do caixão para aquecê-lo ainda uma vez mais na generosidade dos peitos que soube fortalecer, devolvendo-os à vida com uma alma de batalha, com um sentido de sacrifício e de justiça, com um «élan» de combate por uma esperança a que ele concedia a força das certezas. Apoteose de lágrimas fizeram-lhe os filhos da Rua, nestas filigranas subtis do sentimento português, feito todo de requintes profundos, de extremos apaixonados, de aventuras e navegações do coração escondido.

Só uma vez entrou as portas deste jornal, poeirenta a batina, suado e cansado. Que lhe dessem os trinta contos que cá estavam para ele, mas depressa. Sentou-se cinco minutos, protestou pela demora e safou-se sem agradecer. Mas tinha com ele entrado uma rajada de confiança, a força duma missão. Agradecer? A quem? E porquê? Dir-se-ia que não conseguia ver quem dera, porque a alma estava com quem ia receber. Talvez Jesus fosse mais doce no pedir e mais generoso no perdão. Mas alguma partícula da centelha, que é a dádiva total ao imenso rebanho da tragédia o iluminasse na oração com que acabava, em cada dia, o combate santo. E cairia sobre o seu sono a tapeçaria toda tecida da palidez das crianças sem lar, desses gritos sufocados de «Calvário», da miséria das noites ao desabrigo, dos torvelinhos de lama das vielas, do gelo dos casebres sem conforto — e um imenso coro, raivoso e feroz, o atormentaria. Mas esse coro o harmonizaria, com um salmo, e foi ele a grande orquestra que encheria o pequenino templo pleno de murmúrios de crianças e de olhos puros — que lhe rezou o ofício de defuntos. Padre Américo, — pela Assembleia Nacional dos Corações, este povo fez-te funerais nacionais e sentimentais — e é essa uma honra suprema que se guarda para os chefes maiores e para os grandes poetas, como tu eras, — Padre.» [Diário de Notícias, 20 Julho 1956, ano 92, n.º 32. 473, p. 2; Leitão de Barros — Corvos. Ed. Notícias, p. 174-175.].

Leitão de Barros referiu que Padre Américo tinha a tenacidade heróica e alegre do mártir e concluiu que era um grande poeta. Assim sendo, poeta da miséria… Neste aparente dilema, é de recordar a opção tomada pelo Gigante da Caridade, que escreveu a propósito: «Poetas fazem livros. Mártires fazem casas. Antes quero ser mártir.» [O Gaiato, N.º 262, 13 Março 1954, p. 1.]. Contudo, no seu martírio de luta contra a miséria, teve o dom de escrever milhares de páginas de rara beleza, a partir da vida concreta e difícil dos pobres, pelo que não pode ser negligenciado, pelo contrário, há-de ser reconhecido o seu lugar cimeiro na História da Literatura Portuguesa. Urge transmitir aos mais novos esta preciosa herança espiritual, eclesial e cultural.

Santo vivo — como escreveu também Leitão de Barros — o seu simples panteão é na Capela da Casa do Gaiato de Paço de Sousa, onde o Venerável Padre Américo tem campa rasa, à beirinha de um vitral do pelicano, com a luz e presença real do Santíssimo Sacramento, sob o olhar terno da Imaculada Conceição e de S. Francisco de Assis, sua devoção até ao fim. Pai Américo foi para o Céu há 68 anos, tantos quantos Deus o chamou à Sua morada, deixando Portugal banhado em lágrimas…

Padre Manuel Mendes