PÃO DE VIDA

Mais encontros com Pai Américo

Antes de continuarmos com o testemunho de Monsenhor Francisco Moreira das Neves, de 8 de Março de 1987, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, uma ligeira incursão no seu livro O Padre Américo [Lisboa: Edições Paulistas, 1987, p. 51-52.], em que referiu o encontro precedente, no Rossio, cujo teor é similar, mas com outra informação, pelo que transcrevemos este inciso: «[…] Convidámo-lo a almoçar connosco, no hotel de porta aberta para a Rua da Betesga. Aceitou o convite e ficou freguês, com grande gosto nosso, pois muito apreciávamos a sua conversa, sempre extraordinariamente humana e espiritual. Falámos do Padre Flanagan. O Padre Américo já tinha ouvido falar vagamente no seu nome, mas, em concreto, nada sabia da sua obra. Quando lhe conheceu a história, ficou surpreendido com os projectos e programas de que tanto se aproximava.».

O Servo de Deus Mons. Joseph Edward Flanagan [13-VII-1886, Leabeg † 15-V-1948, Berlim] foi um padre irlandês, muito conhecido pela fundação da Boys Town [Cidade dos Rapazes], em 1917, no Nebraska, Diocese de Omaha, nos Estados Unidos da América. O seu Processo de Beatificação teve início em 2012. Noutra oportunidade, daremos conta das referências que Pai Américo deixou sobre este tema.

Retomando o fio-da-meada, da intervenção do Padre Moreira das Neves, depois da transcrição de duas páginas manuscritas, seguem-se mais três, a não perder. Eis:

«[…] Encontros como este foram raros, mas foram alguns. O mais longo foi na Aldeia do Gaiato, em Paço de Sousa, numa tarde de sol, em que o fotografei, de chapéu de palha na cabeça, junto do Cruzeiro da quinta, onde uns garotos jogavam à bola, enquanto outros tratavam das vaquinhas [e havia pássaros a cantar nas árvores] ou cumpriam os deveres escolares.

Um dia, apareceu-me muito contente. Estivera no Ministério das Obras Públicas, aonde o chamara o Ministro, Engenheiro Duarte Pacheco, para lhe comunicar o seguinte: — Tendo visto na imprensa referências à sua Obra, gostei tanto, que resolvi entregar-lhe um subsídio de cem contos.

— Mas, snr. Ministro, tenho de prestar contas sobre a maneira como emprego esse dinheiro?

— É dos regulamentos.

— Então, com muita pena, desisto de aceitar a oferta. Não tenho tempo para gastar com o preenchimento de papéis burocráticos.

— Muito bem. Gosto de homens assim. Em vez de cem, leva 300 contos. E não tem que prestar contas a ninguém.

O episódio veio confirmado pelo Padre Américo em O Gaiato de 12Abril de 1952 [N.º 212, vd. artigo 'Contas', p.1.], em que se transcreve na íntegra o despacho ministerial:

«O alto interesse social da Obra justifica, de sobejo, a ajuda do Estado. Por isso a concedo à Obra e ao homem, dispensando formalidades que embaracem uma acção inspirada apenas em ideais de bondosa e pura solidariedade humana.».

O segredo das conquistas do Padre Américo não estava senão nisto: na sua caridade imensa, transparente e incendiária. Como S. Francisco de Assis que beijava as chagas dos leprosos, ele beijava o «lixo das ruas», como ele chamava à juventude abandonada nas suas degradações. Era remexendo nesse lixo que ele purificava as mãos, na ânsia de transformar pequenos demónios em anjos de carne e osso. E transformava-os sem pressões, na liberdade generosa e lúcida, como fazia, nos Estados Unidos, o famoso Padre Flanagan, cuja obra ele só conheceu depois de ter feito as suas próprias experiências.

Dele guardo uma carta escrita à máquina, mas assinada pelo seu punho, dirigida de Lisboa ao Doutor [Manuel] Gonçalves Cerejeira, futuro Patriarca, que tinha sido em Coimbra o seu director espiritual. Essa carta é cheia de assombrosa humildade, e tão realista, que não me atreveria a lê-la aqui. Mas há-de anexar-se ao processo da sua beatificação, que oxalá não demore séculos a ser declarada em Roma para toda a Cristandade.

Estou a lembrar-me do Cardeal [Prospero Lorenzo] Lambertini — futuro Papa Bento XIV.»

Sobre esta comparação, diga-se que foi longo o Conclave dos Cardeais para a sua eleição, pois decorreu de 18 de Fevereiro a 17 de Agosto de 1740…

Coincidimos com o grande desejo de que não tarde a beatificação do Venerável Padre Américo!…

Em memória do célebre estadista e Engenheiro Duarte José Pacheco [19-IV-1900, Loulé †16-XI-1943, Setúbal], Pai Américo atribuiu o seu nome à Avenida principal da Casa do Gaiato das Ruas do Porto, em Paço de Sousa.

Foi pena que junto da conferência supra não tivesse ficado cópia da carta referida — de Américo de Aguiar para o Doutor Gonçalves Cerejeira. Sobre esta amizade, em Coimbra, o seu colaborador e biógrafo referiu: «Director espiritual do Padre Américo, era também por ele dirigido, no sentido das angústias esquecidas e abandonadas.» [Moreira das Neves — Cardeal Cerejeira: o homem e a obra, no centenário do seu nascimento. Lisboa: Rei dos livros, 1988, p. 43.]. Eis breves notas biográficas do Cardeal Cerejeira: Nasceu a 29-XI-1888, em Lousado — Vila Nova de Famalicão; estudou no Liceu Seminário de Guimarães; transitou para o Liceu Alexandre Herculano, no Porto; frequentou o Seminário Conciliar de Braga, de 1906 a 1909; foi ordenado Presbítero, em 1-IV-1911; diplomou-se em Teologia e doutorou-se em Letras, pela Universidade de Coimbra [vd. Manuel Augusto Rodrigues — 'O percurso universitário do Cardeal Cerejeira', in Correio de Coimbra, de 8 a 22-12-1988], onde foi Professor até 1928; foi ordenado Bispo, em 17-VI-1928, na Sé Nova de Coimbra, sendo consagrador principal D. Manuel Luís Coelho da Silva; nomeado Patriarca de Lisboa, pelo Papa Pio XI, em 18-XI-1929, elevado ao cardinalato em 6-XII-1929, promoveu a criação do Seminário dos Olivais e da Universidade Católica Portuguesa; resignou a 15-V-1971; e faleceu a 1-VIII-1977, na Casa do Bom Pastor — Buraca, sendo sepultado no Mosteiro de S. Vicente de Fora, em Lisboa.

Padre Manuel Mendes