
PÃO DE VIDA
No centenário do Padre Horácio
Na Obra da Rua
A colaboração escrita de
Padre Horácio no jornal O Gaiato começa deste modo: «Faleceu-nos no dia
4 o Zé Brio. O seu nome era José Pinho de Carvalho. Era nosso há sete
anos; agora é exclusivamente de Deus. Nós acreditamos na vida eterna; ele
também acreditava. […]» [N.º 176, 25 Nov.º 1950, p. 2.].
No seu processo sacerdotal, na Cúria Diocesana de Coimbra, o elenco de pedidos abre assim: «1952 — Abril — 20: Pede licença de confessar e celebrar.». Foi trocada vária correspondência sobre o adiamento do exame de Confessor… Em 1 de Junho de 1954, pediu ao Bispo de Coimbra, D. Ernesto, o seguinte: «Como nos anos anteriores, desejando este ano fazer as Colónias de Férias na Senhora da Piedade para as crianças das ruas de Coimbra. Queremos começar pelo dia 21 de Junho e terminar no fim de Setembro. Desejamos também, como de costume, ter o Santíssimo Sacramento na Capela do Santuário, que tem condições. […]».
De 19 de Janeiro de 1955, encontrámos uma declaração episcopal — do Bispo Auxiliar de Coimbra, D. Manuel de Jesus Pereira [1953–1965] — dando ao Padre Horáciopoderes para actos oficiais como representante, a pedido do Padre Américo: «Tendo o Rv.º Padre Américo Monteiro de Aguiar, Director da Obra da Rua e residente na Casa Mãe de Paço de Sousa, proposto o Rv.º Padre Horácio Francisco Azeiteiro, para o representar em todos os actos jurídicos e administrativos necessários à Casa do Gaiato de Coimbra, com sede em Miranda do Corvo. Havemos por bem declarar […]».
Depois da partida inesperada de Pai Américo para o Céu, em 16 de Julho de 1956, devido a um acidente de automóvel, Padre Horácio deu o seu testemunho sentido, no quinzenário da Obra da Rua: «'Pai Santo, conserva em teu nome aqueles que me deste, para que sejam um só como nós somos um'. Como naquela hora de despedida de Quinta-Feira Santa, Jesus pediu ao Pai que conservasse os seus Discípulos, também nós hoje, nesta hora tão grande, pedimos ao Pai do Céu e ao Pai Américo que nos conservem unidos sob a sua protecção.» [O Gaiato, N.º 324, 28 Julho 1956, p.1.].
Do ano seguinte, um naco simples, mas desafiante: «Os seus olhos/ 'Põe os teus olhos nos meus', dizia Pai Américo. À distância de um ano, ano cheio de saudades, não há motivo que mais nos chame à nossa responsabilidade do que o seu olhar paternal sobre todos nós: padres e rapazes da rua. O seu espírito, a sua presença moral, o seu olhar, o seu amor e a sua protecção continuam no meio de nós. Assim o saibamos sentir. Ainda ontem um senhor de muita responsabilidade dizia que com a morte de Pai Américo se esperava um solavanco da Obra e afinal tudo tem corrido como se ele vivesse. Sim. Vive em Deus e nós acreditamos nessa vida. Tenhamos sempre os nossos olhos postos nos seus.» [A Voz dos Novos, N.º 24, 16 Julho 1957, p. 3.].
No início de 1960, duas décadas depois dos primórdios da Casa de Repouso do Gaiato Pobre, em Miranda do Corvo [7-I-1940], afirmou: «São vinte anos de vida cheia. Vida que agora está na sua primavera. Dão testemunho desta mesma vida cheia de beleza uma grande multidão de amigos em toda a parte. Somos a menina dos seus olhos. Como tem sido isto possível? — Graças ao Santíssimo Nome de Jesus e aos homens de boa vontade.» [O Gaiato, N.º 413, 9 Janeiro 1960, p. 4].
Com justiça e oportunidade, foi organizada pelo Padre Júlio uma boa antologia de crónicas da sua autoria, intitulada: Padre Horácio — Crónicas escolhidas e documentário fotográfico. Paço de Sousa: Ed. Casa do Gaiato, 2020.]. Das situações de pobreza e casos pessoais, às actividades comunitárias e espirituais e escolares — em Miranda do Corvo, Coimbra e Praia de Mira, cujos Lares empreendeu — ao amanho das terras e animais, às obras na Casa, passando pelas visitas e partilhas dos amigos e pelas festas, Património dos Pobres, aniversários da Obra da Rua e acontecimentos eclesiais, ida a África, etc. — são textos com espírito cristão, directos e simples, sobre a labuta perseverante na missão pastoral de serviço aos pobres, entrelaçados por múltiplos encontros com vidas humanas pobres, com muitas dores, necessitadas de ajudas. Neles «se reflecte o espírito e a alma apostólica deste irmão sacerdote, que em todo o seu ministério se dedicou apaixonadamente aos pobres, sobremaneira às crianças desprotegidas da rua.» — bem escreveu o seu condiscípulo Padre Adriano Santo [Correio de Coimbra, 1 Abril 2021, p. 8.].
Em Julho de 1992, prestou declarações no Tribunal Eclesiástico de Coimbra, no Paço Episcopal, perante o Juiz — Alfredo Ferreira Dionísio e o Notário — José Varanda, para a Causa de Canonização do Servo de Deus Padre Américo Monteiro de Aguiar.
Nos seus últimos anos entre nós, em fim de século, mesmo com precária saúde, continuou um andarilho dos pobres, centrado na problemática das habitações para pobres, tão actual. Adormeceu no Senhor Jesus em Setúbal, a 6 de Maio de 2000 — Ano Jubilar! No dia 8, muito chuvoso, com 76 anos, desceu à poeira gloriosa na Lentisqueira — das terras da Gândara, arenosas, mas das suas raízes — rodeado de familiares e conterrâneos, gaiatos e padres e mais colaboradores da Obra, e amigos, em lágrimas, como o coval. Na lápide sepulcral, conforme sua vontade, um lema franciscano — Paz e Bem. Na verdade, também testemunhámos isto mesmo, porque vimos e sentimos o seu amor aos Pobres e pela Obra da Rua, que desejava unida e fiel ao Testamento de Pai Américo — amigo do único Mestre! Como não desanimou com a cruz, graças a Deus, durante 50 anos, no seu último escrito [O Gaiato, N.º 1446, 20 Maio 2000, p. 1] deixou: 'Notícias cheias de esperança'!
Padre Manuel Mendes