PÃO DE VIDA
Gangues juvenis
«Pois meus senhores e minhas senhoras — quer ralhes, quer não, a disjuntiva fica: ou chamas agora a Criança abandonada, ou ela entra amanhã na tua casa, munida de pistola, para saquear e matar. Daqui não se foge.»
Padre Américo
Doutrina, 1.º vol., 1974, p. 94.
A violência é um assunto duro de perceber e tratar, pelo que hesitamos em discorrer algumas linhas sobre matéria tão difícil. Porém, esta questão tem de ser reflectida seriamente, considerando o plano inclinado no qual a humanidade continua. O mundo actual, com meios mais sofisticados, está muito violento e os meios de comunicação social e as redes sociais estão cheios de imagens e palavras violentas, nomeadamente sobre as guerras em curso em vários países. A tomar partido, é por todos os inocentes que sofrem a barbárie do pior em que o ser humano pode decair.
Sobre este tema candente, apenas algumas considerações relativas à problemática dos gangues juvenis em Portugal, nomeadamente na Área Metropolitana de Lisboa, também porque há cerca de década e meia temos percorrido esse território urbano, por via de crianças adolescentes e jovens em risco. Esta problemática social, na delinquência juvenil, nas margens da sociedade portuguesa, tem a ver com factores como: abandono dos pais, negligências, consumo de álcool e drogas, condutas desviantes, etc.
Da literatura científica nacional sobre este inquietante problema social, alguns exemplos. Em 2013, na Universidade Católica Portuguesa — Porto, foi apresentada uma Tese de Mestrado em Psicologia intitulada Gangues juvenis em Portugal: Contextualização do fenómeno na perspectiva de profissionais, daautoria de Lília Magalhães Dias, inserida num projecto mais amplo sobre os gangues juvenis na Europa.De referir a investigação persistente de Maria João Leote de Carvalho, da Universidade Nova de Lisboa — dedicada às malhas do desvio, citando, v.g., um estudocom informação recolhida em Tribunal de Família e Menores, no qual foram analisados 201 processos tutelares educativos de 201 jovens, sendo demonstrado que mais de um terço dessa população esteve envolvido em ilícitos com recurso a redes sociais [Comunicação e Sociedade — Crime, Justiça e Média, vol. 42, 2022.]. Esta socióloga, em Março de 2023, afirmou: estamos perante as primeiras gerações em que há uma inversão da relação de poder e Portugal é um dos países onde há mais desfasamento entre as competências digitais de pais e famílias e as competências das crianças e jovens. Os adolescentes vão crescendo num sentimento de impunidade e de não responsabilização, de achar que podem ir crescendo e ir fazendo isto sem que haja uma actuação. Disse ainda que há jovens que entram no sistema tutelar educativo muito tarde, porque por vezes aos primeiros sinais não se actua.
Na última década, há indicadores de um aumento da intensidade da violência juvenil e verifica-se uma maior precocidade no contexto dos processos tutelares educativos. Em 2021, o fenómeno foi escalando até ser dado um alerta, em Março de 2021, no Conselho Superior de Segurança Interna, com o Relatório Anual de Segurança Interna. Então, foi criada uma Comissão de Análise Integrada da Delinquência Juvenil e Criminalidade Violenta. Um alarme público aconteceu com o homicídio de um jovem de 19 anos, em 20 de Outubro de 2021, no Metro das Laranjeiras, em Lisboa. Durante o ano de 2022, houve um crescimento muito intenso deste fenómeno. Em 2023, há uma tendência de estabilização e contenção em baixa do número de casos, por mérito de várias entidades que se debruçam sobre este problema social nos mais novos.
As autoridades policiais portuguesas vigiam — para além do Porto e outras áreas — na Área Metropolitana de Lisboa, cerca de 700 jovens, muitos deles menores, de cerca de 30 gangues juvenis, sendo que há zonas — Loures, Odivelas, Amadora e Sintra — onde se concentram os gangues mais vigiados pelas polícias e serviços de informações. Nos bairros sociais e nas famílias desestruturadas, a violência de grupo torna-se uma afirmação. As rivalidades exteriorizam-se através da agressão. As autoridades monitorizam o que vai se passando na internet e os códigos de silêncio são uma das dificuldades dos investigadores. Os crimes, em contexto grupal e juvenil, têm acontecido em locais como: transportes, escolas, parques e centros comerciais. A actividade destes grupos é responsável pelo aumento acentuado dos crimes de homicídio tentado. Os seus autores são maioritariamente jovens entre os 16 e os 23 anos. Entre os jovens que cometeram factos mais graves no âmbito dos processos tutelares educativos [PTE], 70% tinha processo de promoção e protecção anterior e mais de 60% teve medida em acolhimento residencial. Um desafio para as autoridades envolvidas nesta problemática social é fazer ver a estes jovens delinquentes que não existe impunidade. Estão dezenas de jovens em prisão preventiva, pelo que há jovens que vão ponderando vingam-se dos rivais, funcionando assim como dissuasão. A intervenção precoce entre os jovens de risco é uma das preocupações maiores dos especialistas.
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O nosso tempo global, com luzes e sombras, tem outros contextos — educativos, sociais, económicos — e desafios enormes, nomeadamente para os mais novos, como o mundo digital e a escolaridade obrigatória até aos 18 anos. Pai Américo, como educador e pedagogo, da vivência da Obra da Rua, continua a ter razão: «Salvo melhor opinião de mestres, afigura-se-me que toda a obra de assistência à mocidade indigente, deve incutir, no ânimo dos jovens, amor ao trabalho, e ensiná-los a trabalhar. Sendo certo que o trabalho é o remédio eficaz contra a miséria.». [Obra da Rua, Coimbra, 1942, p. 47.]. E ainda: «A vida de trabalho deve seguir a par. Um dia de trabalho corresponde a uma noite tranquila e sã. Cada rapaz tenha a sua obrigação e seja chamado a contas por ela.» [Do fundamento da Obra da Rua e do Teor dos seus Obreiros, Paço de Sousa, 1950, p. 5.]. Assim, ao percorrer este caminho de veredas e luz, escreveu com mestria: «É a lama dos caminhos que começa a ser ´Limo da terra´, como saiu das mãos do Criador. Deus não fez o homem de lama, para a lama.» [Doutrina, 1.º vol., Paço de Sousa, 1974, p. 66.].
Padre Manuel Mendes