PÃO DE VIDA

Do Papa Francisco em Fátima


«Eu sou do Papa.»

[O Gaiato, n. 89, 26 Jul. 1947, p.1.]

Padre Américo


A condição humana na Terra pode ser vista como a de homo viator [homem peregrino], desde a concepção até à entrega da vida. É uma expressão rica de significado, pela procura de sentido para a vida humana, com sabedoria, resiliência e esperança. As caminhadas e peregrinações têm grande profundidade bíblica — de um povo de pastores — e tradição medieval [v.g. Terra Santa, Caminho de Santiago], fazendo parte incontornável da matriz cristã.

Do grande acontecimento eclesial e mundial, que foi a Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa, com multidões de jovens de muitos países do mundo, irradiando alegria contagiante, alinhavamos apenas meia dúzia de linhas sobre Fátima, relacionando-as depois com pensamentos atinentes de Padre Américo. Nesse grande Santuário mariano, também foi possível estar de vigília, testemunhando uma dessas ondas gigantes formadas na passagem e presença do Papa Francisco — homem vestido de branco — como peregrino em Portugal. Entre milhares de peregrinos, testemunhámos a espera ansiosa e depois o tempo forte de oração na Cova da Iria, desde a noite silenciosa à manhã desejada, do dia 5 de Agosto de 2023. São aqui de lembrar as multidões que seguiam Jesus, para Lhe tocar [Mc 3, 10].

Assim, na escuridão e na aurora desse grande sábado, junto aos caminhos de acesso ao Santuário e à Capelinha, também vimos a chegada contínua de pessoas devotas ao recinto, que não puderam ir a Lisboa, apressadas para conseguirem o melhor lugar e que se foram organizando, em mantas. Bem mais de 200 mil pessoas queriam ver o Papa e rezar com o Pastor da Igreja. As nuvens tristes de incêndios não ofuscaram o helicóptero papal no seu rodopiar e acabou por chegar com entusiasmo geral, aos gritos — Viva o Papa! Os peregrinos, galvanizados, olhavam continuamente um rosto de ancião feliz, com 86 anos, num corpo enfermiço. Levantavam os braços e apresentavam no percurso crianças e enfermos, sendo erguidas algumas delas para as suas mãos. E o Papa beijou-as!

Tendo chegado à Capelinha, na sua proximidade, viu-se rodeado por doentes e reclusos, cujo contacto directo privilegiou. Então, o Papa Francisco quedou-se em silêncio — fez-se um grande silêncio — diante da imagem de Nossa Senhora de Fátima. Como anunciado, rezou o Terço — nesse sítio emblemático, desde 1917 — participado por jovens, em várias línguas, e com a imensa multidão de peregrinos, que não arredaram pé durante longas horas. Depois, no seu discurso, o Papa afirmou: «[…] Rezámos o Terço, uma oração bela e viva, porque nos põe em contacto com a vida de Jesus e de Maria. E meditámos os mistérios da alegria, que nos recordam que a Igreja só pode ser uma casa alegre. A pequena capela em que nos encontramos é como uma bela imagem da Igreja: acolhedora, sem portas. E também aqui podemos insistir que todos podem entrar. Porque esta é a casa da mãe e o coração de uma mãe está sempre aberto a todos os seus filhos. Todos, todos, todos, sem exclusão./ Estamos aqui, sob o olhar materno de Maria, estamos aqui como Igreja, mãe Igreja. E a peregrinação é um traço mariano, porque a primeira a peregrinar depois da anunciação de Jesus foi Maria. […] Façamos um pequeno momento de silêncio e cada um de nós, no seu coração diga: Mãe, o que é que estás a apontar para mim? O que é que tens. E tu apontas para isso. E aí apontas para o nosso coração para que Jesus possa vir e, tal como Jesus aponta para nós, Jesus aponta para o coração de cada um de nós. […]».

O Bispo de Leiria — Fátima, D. José Ornelas, nas boas-vindas, referiu problemáticas actuais que preocupam a Igreja e o mundo: «Juntamo-nos na oração de Vossa Santidade pela paz, com a qual este Santuário profundamente se identifica, tendo particularmente em atenção a guerra na Ucrânia e em tantos outros focos de conflito no mundo, que atingem dramaticamente a vida e o futuro, sobretudo das crianças e dos jovens.». Lembrando o sofrimento dos Pastorinhos de Fátima, evocou também as «crianças e jovens vítimas da doença, da pobreza, da fome, de todo o tipo de conflito, dos abusos, das injustiças e da exclusão dos mais frágeis.».

Sobre esta presença muito importante do Papa Francisco em Fátima, num cenário de grave crise internacional e ecológica, procuremos algumas explicações para a sua vinda a Fátima, depois de 2017, sendo uma de extrema importância: a urgência da paz! O silêncio e as preces do Papa, de enorme tristeza pelas guerras — como a tragédia da Ucrânia, celeiro da Europa — apontam-nos para as causas das coisas. Socorremo-nos — nos permitam — de Padre Américo, num inciso em tempo de II Guerra Mundial: «Seja qual for a causa alegada para explicar a origem das guerras, nomeadamente a de hoje, a guerra está toda nisto: O Pão mal repartido./ Toda a gente o sabe, e tu idem: E até se sabe muito bem, que depois destes tempos de delírio bélico, vem outra guerra maior, e assim por todos os séculos dos séculos, enquanto o fiel da balança não estiver aprumado. Toda a gente sim, e tu também.» [Pão dos Pobres, vol. III, Coimbra, 1943, p. 74.].

Olhando para a sua figura de relevo mundial e autoridade espiritual, no contexto dos povos, é de perguntar: — Porque será que multidões de pessoas acompanham o Papa nas suas viagens e a sua voz é escutada? Não promete nada de material, mas afirma um forte dinamismo espiritual — da centralidade de Jesus Salvador na História, dos pobres que clamam por justiça e do urgente cuidado da Criação, em perigo. No seu tempo, Padre Américo também se impressionou: «Quando, há dias, vi nos jornais a fotografia do Sumo Pontífice [Papa Pio XII] a rezar com o seu povo no meio de Roma incendiada, pareceu-me ver no seu rosto aflito o ad quem ibimus, Domine?, do primeiro Pescador. Sim; para onde havemos de fugir, a que porta havemos de bater, se somente Tu, Senhor, tens palavras de Vida eterna?!» [Pão dos Pobres, vol. IV, Paço de Sousa, 1984, p. 99-100.].

O Papa Francisco referiu-se a uma Igreja sem portas, como a Capelinha de Fátima. O que significa, sem confusões? Quanto à certeza da sua fé cristã, na Igreja Católica, tomemos o exemplo de Padre Américo, que foi um coração aberto a todos, enviado a evangelizar os pobres, mas sem proselitismo e atento àqueles que pretendem impor ideologias que desprezam a vida, a família e a dimensão espiritual do ser humano: «Cuida-se, ainda, que alguém possa ser simultaneamente protestante com os protestantes, judeu com os judeus, espírita com os espíritas, católico com os católicos, e assim por diante. Ora não é verdade. Isso seria não ser. Eu cá tenho uma só casaca. Casaca que não dou, nem viro, nem troco./ Agora, se eu disser que me faço tudo para todos, para que todos sejam meus, isso sim. Isso faço. Mas não deixo de ser católico. Católico, apostólico, romano. Sou da Santa Madre Igreja Católica, aonde espero morrer.» [O Gaiato, N.º 81, 5 Abril 1947, p. 2.].

Ainda é de notar (e bem) terem chamado pessoas frágeis — que vimos muito emocionadas — para junto do Papa Francisco, em oração, na Capelinha — e muitas esforçaram-se por se aproximar, mas não conseguiram. No dia 13 de Maio de 1952, em Fátima, Padre Américo foi muito claro: «[…] Vamos curar as feridas dos Pobres e assim damos testemunho de Cristo. O samaritano é o único que ganha todas as partidas. O samaritano, irmãos, vive. Dele falou o Mestre.» [O Gaiato, N.º 334, 22 Dez. 1956, p. 1.].

Na Divina Comédia, Dante narra a sua viagem imaginária através do Inferno, do Purgatório e Paraíso. No caminho espiritual do homem peregrino, à procura do encontro com o Divino, o exemplo magistral foi-nos deixado por Jesus na parábola do Bom Samaritano [Lc 10, 25-37].

Padre Manuel Mendes