PÃO DE VIDA

Educação pela confiança - um caso

A confiança é um elemento fundamental na Educação humana, promotor da liberdade, iniciativa e responsabilidade. Neste sentido, Pai Américo escreveu com fé e experiência cristã o seguinte: «Confiança. Gosto da força que esta palavra tem. Antes quero a derrota da confiança do que o triunfo da vigilância. Asneiras que eles façam, por si mesmo, são lições. Vem lá o mundo novo, ninguém tenha dúvida a tal respeito. A última palavra não é dos homens, embora eles falem de muitas maneiras e em muitos lugares. Deus é quem risca. As obras embebidas do seu Espírito, é que o manifestam.» ['Doutrina', in O Gaiato, Ano VII, Nº. 180, p. 2].

De notar nesta matéria que Louis Corman — médico psiquiatra francês [1901, Roubaix — 1995, Nantes] — sublinhou que: «o bom educador é aquele que coloca sempre imagens de vida positivas diante dos olhos da criança. Em lugar de receio, do pessimismo, ou da dúvida de nós próprios, põe sempre a confiança. Em vez do descrédito, a benevolência; em vez da inveja e do ressentimento, o amor. Desta forma, favorece o desabrochar das forças de expansão, o desabrochar na alegria e na liberdade.» [A educação pela confiança. Porto: Liv. Civilização, 1969, p.26].

Assim, na continuidade do artigo que tem vindo a ser apresentado e comentado, vem bem a propósito esta história muito humana que Pai Américo contou como exemplo marcante: «Um caso: O Leonel é vedeta, no Beco dos Canivetes. Um dia apareceu de saco na mão, para ficar. Tem uns olhos de azeviche. É meigo e inteligente. Cansou-se num instante do bem que procurava. Não se adapta. Geme:

Deixe-me ir embora, pelas alminhas do purgatório!

Tinha o Beco dos Canivetes atravessado no coração; queria respirar!

Resolveu-se mandá-lo aviar um recado a Coimbra, justamente para onde ele queria ir e ficar. Ele conhece todas as lojas, de namorar o que está lá dentro… para os mais! Deu-se-lhe um porta-moedas recheado. À noite regressa com compras e contas, importante. Mediu responsabilidades. Sentiu-se homem. Esqueceu mágoas. Jogou-se uma cartada e ganhou-se a partida. Hoje é o nosso procurador!

Mas este Leonel é um mundo. Ele tem pais e a Obra da Rua é para os sem família. Batem-nos à porta todos os dias os pedidos, os feirantes, os pedintes, os aleijados — a legião da mocidade portuguesa!

— Olha, Leonel; tens de ir para casa, porque tens família.

Olhou com duas lágrimas roliças e não disse nada, nem nós dissemos mais. Tempos andados, de novo chamámos o pequenino, e muito encostadinho ao peito, meigamente, que ele também o é, pedimos que nos dissesse o que havíamos de fazer à multidão crescente de desamparados.

Traga-os para nossa casa.

Não vês que nos falta espaço?

— Arranje casas para nós, mas não nos mande embora, pelas alminhas do purgatório!

As lágrimas caem sempre de muito alto e batem muito fundo!

São violentas. Ninguém resiste. Aquele para nós , em vez de para mim, como fez, foi ordem de comando.

Leonel venceu. Forças vivas da nação. Ricos e pobres. Seitas e credos. Imprensa. Opinião. Tudo e todos abrem caminho, à passagem do recoveiro que leva o recado do feliz gaiato: — arranje casas para nós!

Talhado para grandes coisas, ele levanta o brado de misericórdia e pede ao mundo que seja clemente, dando aos seus irmãozitos da rua todo o bem que agora desfruta. Nunca se viu tamanha generosidade em tão pequenino coração; ele anda a mudar os dentes!» [Boletim da Assistência Social, dez. 1943, p. 436-437.].

Neste tempo pós-moderno e no mundo ocidental, focado mais no individualismo, em que a natalidade tem baixado de forma preocupante e sobe de forma considerável a faixa etária de adolescentes com comportamentos desviantes, a exigir medidas educativas urgentes e em espaços de acolhimento especializados, sendo de considerar a acção social da Igreja, é de reter esta belíssima página de antologia de Pai Américo, reconhecidamente um grande Educador português no século XX, cujo pensamento pedagógico fascinante dá lições prenhes de actualidade.

Padre Manuel Mendes