
PÃO DE VIDA
Da vida familiar
Nos primeiros tempos da Obra da Rua, foi-se realizando logo o sonho de Pai Américo, de acordo com o que escreveu: «Se mais alguém no país quiser consagrar a sua vida ao garoto da rua, ou à chusma dos filhos empobrecidos pelos males sociais, deve dar à Obra a máxima objectividade, educando a criança como ela deveria sê-lo em sua casa, no seu meio, dentro das possibilidades da família. A Obra deve girar nos moldes da família, enquanto o Miúdo lhe não puder ser restituído; e se este a não tiver, há-de sair do Ninho capaz de a constituir, pela prática que teve dela.» [Obra da Rua, Coimbra, 1942, 47-48.]. Na verdade, os Rapazes acolhidos no berço da Obra da Rua integravam-se num ambiente próprio de uma família cristã e num espírito comunitário do tudo nosso. Este objectivo pedagógico foi algo de novo em matéria de acolhimento aos garotos das ruas, como foi observado: «Em relação a outras obras de assistência, uma das grandes inovações da Obra da Rua consiste em que os rapazes vivem em verdadeiro ambiente familiar […]» [João Evangelista Loureiro — Estruturação e análise de alguns princípios educativos da «Obra da Rua», sep., Lourenço Marques, 1966, p. 189.].
Neste contexto, continuamos a seguir o artigo supra referenciado, com mais alguns parágrafos bem elucidativos:
«O pequenino goza a posse, o domínio, o interesse pela vida de casa. Eles vão alegremente montes em fora, por pinhas e lenha caída, e assim poupar a abatida. Não estragam. Zelam. Exemplo: Retiraram alguns da Casa de Coimbra para a de Paço de Sousa, em fundação. É no outono. Os caseiros apanham frutos das árvores para entregar a meias, segundo a letra do arrendamento. Fazem medida exacta e honesta do refugo e escondem a boa fruta na mata, para ir buscar ao depois. Dois dos nossos rapazes observam a manobra, calados. À noitinha revelam:
— Vamos buscar um tesoiro!
Trazem um cesto enorme de preciosos pomos. Narram. Fazem um grande nariz aos roubados:
— Olha os tipos.
E vão guardar no celeiro, para eles. Zelam.
O ambiente de família transforma e convence estes pequenos sem família. A verdade encontra-se na própria natureza das coisas, virgem. Nem sistemas, nem violências, nem pautas. Basta a lareira! Os mais infantes chamam mãe à Regente e, nas doenças, reclamam a sua presença: Mãezinha, não saia daqui!
Acercam-se da mesa, por gulodices. Pedem e esperam carinhos.
A hora das nossas merendas é poética desarmonia; raramente há do mesmo para todos, mas todos têm qualquer coisa e ficam acomodados. É assim nas famílias pobres, de muitos filhos. Nós somos muitos e somos pobres.
À noitinha, os pequeninos obreiros sobem à sala-de-estar, põem o rádio onde bem lhes parece, lêem histórias, discutem infernalmente o Benfica e o União — fazem vida de clube. Em nenhuma dependência da casa se lê o é proibida a entrada; nem uma. Os filhos são livres.
A desgraça de não terem lar, não lhes furta o amor ao lar.
Chegam-se para ele como os pintainhos nas chocadeiras. Crescem. Frutificam qual planta em terreno adequado. Eles são eles.
Asilos. Reformatórios. Orfanatos. Recolhimentos; nestes tremendos casarões, eles são a regra, são o estatuto, são o uniforme, são a parada, são a vontade do Senhor Director e raramente algo mais. […]». [P.e Américo — «Obra da Rua — Obra de rapazes, para rapazes, pelos rapazes: Casa do Gaiato de Coimbra», in Boletim da Assistência Social, N.º 10, Dezembro 1943, p. 435.]. Continuaremos a abordar este assunto — a revolução pacífica do garoto da rua — com a pena do mesmo mestre — Pai Américo!
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Como apêndice, sobre a educação da infância desvalida no século XIX, tendo em mãos um livrinho raro, aqui vai o título: Os Asylos Agricolas da Suissa considerados como meios de educação para as creanças pobres remedio contra os progressos do pauperismo e systema de colonisação traduzido do francez e aplicado ao estado presente de Portugal. Porto: Jacintho Antonio Pinto da Silva, 1865. Foi oferecido ao Barão de Nova Sintra, pelo Editor; sendo que, em 1886, no Porto, iniciou a sua actividade um estabelecimento humanitário para crianças pobres, fundado por José Joaquim Leite Guimarães [21-VII-1808 †3-VI-1870].
Padre Manuel Mendes